«(…) Enquanto esperava o tempo de
Rebecca receber a imagem, fiz-lhe um pequeno resumo da situação, sem deixar de
fora a desconfiança de James Moselane de que eu tinha sido vítima de um trote
ou talvez até corresse perigo. É claro que eu não vou, mas estou morrendo de
curiosidade para saber onde essa foto foi tirada, falei. Como pode ver, parece
que a inscrição faz parte de uma parede maior, onde o texto se organiza em
colunas verticais. Quanto ao alfabeto em si... Cheguei mais perto e tentei
posicionar melhor a luminária da escrivaninha. Estou com uma sensação
estranha...,mas, por mais que eu tente, não consigo... Um ruído sugeriu que
Rebecca mastigava um punhado de castanhas, sinal de que estava intrigada. E o
que quer que eu faça?,
perguntou ela. Posso garantir que essa foto não foi tirada na minha escavação.
Se alguém tivesse deparado com algo assim aqui, em Creta, eu saberia, pode
acreditar. Quero que faça o seguinte: dê uma boa olhadela na inscrição e diga-me
onde viu esses símbolos antes. Eu sabia que era um tiro no escuro, mas
precisava tentar. Rebecca sempre tivera talento para enxergar além do óbvio.
Fora ela quem havia descoberto o esconderijo de barras de chocolate do meu pai
quando éramos crianças, dentro de uma velha caixa de apetrechos de pesca na
garagem. Mesmo nessa ocasião, apesar de adorar doces, não tinha sugerido que
comêssemos uma das barras: para ela, o simples triunfo da descoberta e de poder
contar-me uma coisa sobre o meu pai que eu não soubesse já era um prémio.
Vou dar-lhe mais um minuto...,
falei. Que tal me dar uns dias para perguntar por aí?, retrucou Rebecca. Posso mandar
a foto para o sr. Telemakhos... Não! Não mostre essa foto a ninguém. Porquê?
Hesitei, consciente de que estava
sendo irracional. Porque tem alguma coisa nessa escrita que me é muito
familiar..., de um jeito meio esquisito. É como se eu enxergasse uma inscrição
invisível... A verdade nos ocorreu ao mesmo tempo. O caderno da sua avó!,
exclamou Rebecca com um arquejo, movimentando-se freneticamente do outro lado.
Aquele que lhe deu pelo Natal... Estremeci, alarmada. Não, é impossível.
Loucura. Porquê? Rebecca conhecia bem o meu calcanhar de Aquiles, mas estava
agitada demais para pisar com delicadeza nele. Ela sempre disse que lhe
deixaria instruções, não foi? E que as receberia quando menos esperasse. Bom,
talvez seja isso. A grande chamada da avó. Quem sabe... A voz de Rebecca ergueu-se
num tom desafiador quando ela com certeza se deu conta do absurdo da sugestão.
Quem sabe se ela estará esperando em Amsterdão?
Duas
silhuetas surgiram no horizonte tremeluzente. Era a hora mais clara e mais
quente do dia, quando céu e terra se encontravam numa névoa prateada e não se
conseguia distinguir um do outro. No entanto, bem devagar, à medida que avançavam
pela salina plana, as duas formas tremeluzentes se materializaram em duas
mulheres, uma adulta; a outra, nem tanto. Mirina e Lilli tinham passado muitos
dias fora, só as duas. O objectivo da viagem era óbvio, pois todo o tipo de caça
e arma se balançava nos seus ombros preso em correias de couro, e os seus
passos ficavam mais velozes conforme elas se aproximavam do povoado à frente. Como
a mãe vai ficar orgulhosa!, exclamou Lilli. Espero que conte a ela como eu
peguei aquele coelho na arapuca. Não vou omitir nenhum detalhe, prometeu
Mirina, afagando os cabelos embaraçados da irmã caçula. Talvez só aquela parte
em que quase quebrou o pescoço. É..., Lilli encolheu os ombros e deu aquela danadinha
lenta e engraçada que sempre dava quando ficava constrangida. É melhor não
falar nisso, senão nunca mais vou poder sair convosco. Seria uma pena, não é?,
indagou ela, erguendo os olhos para Mirina com um sorriso esperançoso.
Mirina
aquiesceu com firmeza. Uma pena enorme. Você tem potencial para ser uma grande
caçadora. Além do mais... Ela não conseguiu conter uma risadinha. É uma fonte inesgotável
de diversão. Lilli fechou a cara, mas Mirina sabia que no fundo estava
contente. Pequena para uma menina de 12 anos, sua irmã passara a viagem inteira
tentando desesperadamente provar o próprio valor, e Mirina tivera uma grata
surpresa com a sua capacidade de lidar com as dificuldades. Mesmo com fome ou
cansada, Lilli nunca se recusara a cumprir nenhuma tarefa e nunca derramara uma
só lágrima. Pelo menos não na sua frente. Com seis anos a mais do que Lilli e tão
hábil quanto qualquer homem da mesma idade, Mirina havia considerado o seu
dever ensinar à irmãzinha a arte da caça». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida,
2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
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