O
Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…)
Desde a mais tenra idade que a filha de Afonso V vivia subjugada por um rigor
monástico que deve já ter nascido com ela e, com o andar dos anos, o exemplo
daquela tia Filipa adorada, e as próprias tendências de uma Corte religiosa,
devem tê-lo intensificado. Quando o pai regressou da viagem a Arzila, um
regresso triunfal, de resto, dona Joana descobriu, ela que herdara a casa da
mãe com alfaias, dinheiro, jóias, tudo, que, Princesa e filha de Rei!, não possuía
um vestido decente para envergar na recepção ao pai! Não havia nem brocados nem
sedas à venda, de momento, nada de encomendas feitas e, daí, que apenas tenha
conseguido um bocado de veludo, e verde como os seus olhos, e foi o que a
salvou de aparecer de escuro, como uma monja, o que seria destoante, numa festa
onde os que esperavam os triunfadores se vestiam de azul, carmesim, verde,
amarelo-torrado, brocados e sedas coloridas. Aproveitou-se da chegada e da
alegria geral para solicitar ao fraco pai, que era incapaz de recusar fosse o
que fosse a alguém e muito menos aos filhos, a permanência em Odivelas. E ele, Afonso,
tão temente a Deus, cavaleiro como Amadis, sempre pela sua dama, em busca do
Graal, iria recusar a vontade do Senhor? Não recusou. O irmão, esse, ficou
danado. Casado, por vontade do pai, com a primita muito bonita e tão religiosa
como a cunhada, prima que respeitava desde bebé, mas à qual se unia mais por
razões de utilidade pública, amizade, e não por amor, porque ele iria brotar
mais tarde na sua vida jovem, não desejava afastar-se da irmã que muito amava e
lhe servia de subtil amparo e discretíssima confidente. O rei preferiu reunir o
Conselho. Estava bem, a filha poderia acolher-se por uns tempos em Odivelas,
apenas como salutar experiência espiritual…
Os
povos tremeram. Ela estava em idade casadoira, o príncipe e a mulher não tinham
ainda filhos, ela representava, se se matrimoniasse, o garante da independência
do Reino. O virtuoso e viturioso rey, foi delicadamente informado pelos
seus súbditos do facto. O rei lá respondeu como conseguiu, já ciente da vontade
indomável da filha e da sua própria fraqueza, mas o Príncipe continuava a
barafustar. Só que dona Joana tencionava ficar não em Odivelas, mas mais longe.
Em Aveiro, no Convento de Jesus, e já discutira o facto com dona Leonor Menezes,
sua amiga e também alma dada à devoção e o corpo, à dureza dos cilícios. A
Corte, em Julho de 1472, dirigiu-se para norte. O príncipe avançava, sobre o
soberbo cavalo negro, triste e enraivecido, porque sabia que a irmã conseguira
ir para Aveiro e o pai não tivera forças para a dissuadir. Mais tarde
aprenderia à sua custa que o Rei até actuara em toda a questão com alguma
sabedoria, pois aceitara o veredicto do destino com menos rebeldia. Dona Joana convencera
o pai a ficar apenas uns dias em Aveiro, no mosteiro que ele ajudara na
fundação, etc., e o pusilânime monarca que poderia ter feito senão consentir?
Todos a acompanharam. João protestou, fez barulho. Nada demoveu a Princesa.
João ia-se acostumando, ou ter-se-ia da acostumar, à sua solidão. O casamento
não preenchera esse buraco medonho que se abre na nossa alma ao longo da vida
ou a partir de certo momento dela. Dona Joana era tão teimosa como ele e o resto
da família. Só que dona Joana, depois, avançou uma etapa: queria tomar votos. O
pai cedeu, desalentado, mais morto que vivo. O irmão entrou em fúria e, num ímpeto
de raiva que, com o tempo, depois, aprendeu a dominar, e penso que desta forma
sincera e leal só os teve com relação à irmã que tanto amava, partiu para Aveiro.
A Corte entreolhava-se perante a força, a violência, a persistência desse jovem
tão diferente do fraco e manso progenitor. O que se passou entre os irmãos, com
as restantes monjas tremendo de medo, foi um choque titânico de duas vontades
idênticas. Nem um nem outro conseguiu vencer a batalha mas dona Joana ficou e,
em certa medida, o irmão viu mais que uma batalha inconclusiva». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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