sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Tinha os cabelos escuros e caídos até aos ombros, a pele morena, os olhos negros, sempre muito vivos, e um sorriso largo…»

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«(…) Com paciência e afecto o fidalgo tentou tranquilizá-la, revelando-lhe que Roma era provavelmente a cidade cristã mais tolerante do mundo. E isso explicava-se pelo facto de os poetas, os artistas e os novos sábios, talvez cansados do uso das línguas clássicas, se começarem a interessar pela cultura hebraica. A própria Cabala, tratado de filosofia destinado a resumir os pontos fundamentais de uma religião secreta que teria coexistido com a crença primordial dos hebreus, em ordem a descodificar na Bíblia os complexos mistérios do porvir através de inúmeros criptogramas, seduzia filósofos e cientistas das sociedades europeias mais cultas, sobretudo a romana. Daí que Roma e as suas classes ilustradas manifestassem um certo apreço pelos judeus, ao contrário do que acontecia em Portugal e Castela, sobretudo em Castela. Dizeis isso para me tranquilizardes, não é? Não tenhas receio, aconselhou. Mais umas horas e estarás a salvo. E lá, em Roma, onde me vou acolher e quem me vai ajudar? Alguém saberá tratar de ti e da tua segurança. Eu sei com quem devo ajustar o caso.
Já mais serena, quase pacificada, a judia inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos de mansinho e, num tom murmurado, exclamou: sois a minha guarda, senhor, e por isso vos quero e vos estimo! Ao ouvir estas palavras, ainda por cima carregadas de afecto e intencional ternura, Diogo Pacheco tomou a rapariga pela cintura e de seguida, arrebatado por um sentimento de fervor jamais sentido, colou os seus lábios à perfeição dos lábios dela. Raquel afagou-lhe suave e repetidamente os braços, despenteou-lhe a farta cabeleira e, também ela turvada de ansiedade, exclamou em tom ciciado: obrigada pelo beijo..., e pela vida. Fora o primeiro beijo das suas vidas. Diogo Pacheco era um homem de estatura superior à média e de rara elegância. Tinha os cabelos escuros e caídos até aos ombros, a pele morena, os olhos negros, sempre muito vivos, e um sorriso largo em que sobressaíam as duas fileiras de dentes quase brancos e alinhados. A tal aspecto físico nenhuma donzela da corte, que ele tantas vezes e com tanto gosto frequentava, resistia ou se revelava indiferente. Todas gostavam do gentil nobre. Todas gostavam de o ter.
Diga-se, no entanto, que, para além da sua invulgar compostura e boa parecença, era de algum modo diferente da generalidade dos nobres e da esmagadora maioria dos que pertenciam às classes mais abastadas do reino ou protegidas pelo rei. Não que fosse isento de pecados ou não tivesse cometido actos de inqualificável injustiça de que parecia arrependido. Ele próprio, como tantos outros com influência mais ou menos directa nas decisões do monarca, tivera um importante papel no processo de perseguição aos judeus, quando estes, depois de expulsos de Castela, foram viver para Portugal. Nessa altura, foi um dos primeiros a incentivar Manuel I a pôr fim aos hereges, a converter as sinagogas em templos de culto cristão e a obrigar os mouros e os judeus a assistirem às missas e a receberem os sacramentos. Fora também um dos muitos que defenderam o baptismo forçado dos hebreus, a sujeição dos filhos de Moisés ao culto católico e, consequentemente, a proibição de as famílias exercerem nas suas próprias casas os ritos mosaicos, incluindo a prática da circuncisão das crianças.
Só que esses tempos iam longe. Diogo Pacheco já não era o fidalgo implacável, muito menos o fanático religioso que, em certas discussões com o rei ou com os mais insensatos e desapiedados membros do clero, propunha medidas de terrível crueldade contra o povo judeu. Sucedia, porém, ele sabia-o como poucos, que nada melhor havia que o conhecimento e a experiência de vida para o homem sarar feridas e remir pecados. Por muito que pense, disse a judia, a certa altura, no propósito de interromper o silêncio entre ambos e de justificar o vazio da alma em que os cristãos a fizeram mergulhar para sempre, nunca perceberei porque razão à cólera dos homens corresponde por hábito o alheamento de Deus». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                         
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