«(…) Não digas heresias, mulher
nefanda, atalhou, agreste, Diogo Pacheco, sobre cujo peito ela tinha voltado a
apoiar a cabeça. Muito menos as digas à frente de quem quer que seja. Sem se
perturbar com o furor do jurisconsulto, Raquel explicou, delicada e terna, que,
apesar de tudo, não tinha deixado de acreditar em Deus e nos preceitos do
Decálogo. Se assim reagia era por força de um sentimento terrível e abrasador
que lhe habitava o espírito desde que os pais haviam sido lançados à fogueira.
Disso não se esquecia, como aliás nunca se esquecera de quem a salvara de morte
idêntica. E esse salvador estava ali, à sua frente, humano e selvagem, outra
vez e sempre a protegê-la do ódio bestial da canalha intolerante e criminosa. Vem
cá, Raquel, ordenou ele, depois de se desajeitar a custo da esteira imunda. Quero
mostrar-te uma coisa. Tomando-a pela mão, conduziu-a cortesmente à única porta
do aposento de onde se podia espreitar o Tejo através de uma pequena fresta que
ela costumava tapar com um trapo apodrecido.
Estás a ver o Tejo? Pois bem, as
vidas são como os rios: vão para onde têm de ir, e não para onde gostaríamos
que elas fossem. Ou para onde muitos desejam que elas vão..., respondeu a
jovem, de imediato, sem fixar o homem. A vontade de Deus é intangível, bela
jovem. Ele e só Ele define o nosso princípio e o nosso fim. Achais, senhor?
Achais que é apenas isso? E de quem são as mãos que acendem as fogueiras? Sufocado
pela memória do passado, constrangido pela aventura do presente, o nobre
virou-se para a judia, colocou-lhe as mãos nos ombros, ignorou as questões dela
e, a despropósito, perguntou: gostas de mim? Ela sorriu, corou de vergonha, e
respondeu: isso não se pergunta, sente-se. Ou acaso não sentis? Sem mais
palavras, segurou-a de novo pela cintura, arrastou-a lentamente até à cama,
para então, com a alma incendiada de desejo, deixar cair o seu corpo sobre o
corpo dela. Depois beijou-a, na urgência e na demora. Meu senhor, confidenciou
ela, num murmúrio, quando o fidalgo se recompôs, eu nunca pertenci a nenhum
homem. O meu corpo ainda tem a marca da sagração.
Ora, disso já ele suspeitava. O
facto de saber que Raquel vivera os últimos sete anos sob a asa protectora da
família de um professor de Leis, com fortes mas dissimuladas simpatias pela
cultura hebraica, constituía o bastante para o levar a supor que a rapariga
jamais tivera qualquer aventura amorosa. E se tal não acontecera durante esse
longo período de forçada letargia para a jovem, muito menos teria acontecido
nos oito meses que decorreram sobre a data em que, devido ao falecimento
prematuro do professor e à dispersão da respectiva família, Diogo Pacheco a
colocara em segredo e sob vigilância no anexo da casa do marinheiro, em pleno
bairro da costa do castelo. Sois casta, então..., disse só por dizer. Sou.
Feita a íntima confissão, o
fidalgo continuou a seduzi-la e a alvoroçá-la, talvez agora até com mais
empenho, ora tocando-lhe nos seios entumecidos, ora afagando-lhe as coxas com
as mãos em fogo. Gostaríeis de ser o primeiro em mim, não é?, questionou ela,
ao aperceber-se da impaciência do homem. Ele já nem pensava noutra coisa!
Descontrolado, incapaz de articular uma palavra de afecto ou de responder a
qualquer pergunta da bela jovem, prosseguiu aos poucos o seu intento, começando
por lhe descobrir o peito, de seguida o ventre, finalmente as pernas lisas e
perfeitas como as colunas de Salomão. Tomado pela mais desabrida das
ansiedades, despiu as próprias vestes e, sem um olhar de ternura ou gemido de
prazer, apoderou-se dela com toda a força da paixão que morava em si. Só que,
por afogo ou embaraço, esmoreceu no instante capital... Com certeza é do fervor,
desculpou-se, aflito, tentando controlar o desespero e a vergonha que se
apoderaram dele. Mas de repente lembrou-se de que o mesmo acontecera já a Sua
Alteza Real, não uma vez, mas várias, ora com a própria rainha, dona Maria de
Castela, mulher e cunhada, ora com donzelas da Casa da Mina que em certas
circunstâncias lhe serviam de conforto na intimidade dos aposentos. Fora o
próprio rei que por diversas ocasiões lhe confessara tão tristes desaires. De
modo que se o Altíssimo era pouco benevolente com o soberano nas questões do
prazer da carne, menos o seria naturalmente com ele, servo menor, pobre e miserável
súbdito do alto imperante. Não vos preocupeis com a vossa quebra, meu senhor,
tranquilizou-o ela num tom de comovente compreensão, talvez mais logo, à hora
do Sol poente, consigais realizar-vos, e fazer com que me realize também. Desculpa,
Raquel... De quê? Por isto ter definhado, disse, enquanto tentava esticar o
membro com a ponta dos dedos. Ficai tranquilo, que o assunto não me aflige,
reiterou ela, antes de lhe pedir para descansar o coração em sobressalto. Posso
então repousá-lo em ti?, perguntou, com enternecedora candura. Sim, repousai-o
em mim». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor,
2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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