1754-1758
«(…)
Como se chama, senhor meu Pai, aquela estrela com asas? Pó
de estrela a fazer-se voo, poalha de luz a fazer-se sinal. E eu, espreitando
pelo óculo sem observar o que ela, apenas no reparo a esmo, distingue a olho
nu, reinvento o que penso conhecer, tentando adivinhar a partir da sua
descrição, confundindo o que ela julga ver com aquilo que inventa. Mas a
predilecção da minha filha vai para as estrelas cadentes, precipitando-se na
sua vertigem e queda de chama lá no alto. Onde a Estrela Polar nos guia pelos
caminhos da terra e do mar, a última da cauda da Ursa Menor afastada da sua
floresta de árvores apagadas depois do escurecer. E Leonor ri encantada com
aquela aventura, melhor do que as histórias de fadas, estrelas como espelhos
onde o sol se reflecte, garante-se, e ela acreditando em mim aceita, crendo
saber eu tudo o que diz respeito aos orbes celestes. Como se chama, senhor meu
Pai, aquela estrela com asas? Tento em vão sossegar a sede de instrução da
minha filha, sem poder imaginar ser de Saturno que ela fala. Isso só entenderei
muitos anos mais tarde, com a ajuda do telescópio de Dollon, encomendado por
mim a França para a quinta de Almada.
Com ele varrerei de Norte a Sul os caminhos imbricados do céu. Deste modo a
fingir enganar a solidão da velhice.
Leonor consegue a muito custo que a mãe a deixe ir com Brites
buscar os doces encomendados ao Convento das Inglesinhas. Batem com a pesada
aldraba do grande portão que dá para a Rua de Buenos Aires, distraindo-se a
menina, enquanto esperam, a olhar as corvetas, as galeotas e as faluas
transportando barris de madeira, a cruzarem as águas encapeladas do Tejo,
empurradas pelo vento agreste que trepa as colinas com desembaraço, limpando os
ares dos fedores e dos miasmas, para se precipitar de seguida onde as duas se
encontram a enrodilhar-lhes as saias, quase levando consigo o chapéu que Leonor
sente a ameaçar soltar-se dos pregos de prata e do enredo enriçado dos seus
cabelos revoltos. Mas a mão de Brites é mais lesta a tomá-lo pelas fitas que já
deslaçam o nó de cetim escorregadio, e com elas volta a dar um laço de
borboleta junto ao queixo da criança. Depois, sem mais palavras, faz soar de
novo o batente de ferro na madeira velha da porta, da qual a irmã hortelã, depois
de ter espreitado pelo postigo, abre as pesadas portadas a chiarem nos gonzos
enferrujados, deixando-as entrar: lugar espaçoso onde o pomar e o jardim
benignamente se misturam.
Seguem as três pela área
mais estreita, ladeada de arbustos magros, de murta, de madressilva e avenca.
Mais adiante ficam os regos das laranjeiras, das pereiras, dos limoeiros, não
muito longe dos canteiros das roseiras e dos jacintos, do amaranto púrpura. Em
cima do muro baixo que ladeia o mosteiro, onde se vê o portãozinho que dá para
o beco das traseiras, estão vasos de amores-perfeitos, de miosótis e de
sardinheiras. A Leonor, que segue cuidando evitar a gravilha para não magoar os
pés mal defendidos pelos finos sapatos, chega um persistente cheiro adocicado,
numa mistura de suor, de mênstruo e de fruto sovado, que a jovem freira à sua
frente solta ao ondular o hábito com o passo ligeiro. Mal entram na
largueza espaçosa da cozinha são apanhadas de chofre pela intensidade de novos
aromas entre si entrançados: o do arroz-doce a cozer devagar no leite
encorpado, o do empadão de lebre a sair do forno e o do guisado de aves. Odores
a contrastarem com a delicadeza da água de rosas a ferver com açúcar, o do
manjar branco e dos queijinhos do céu acabados de saírem do fogo». In Maria Teresa
Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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