O
Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Minha mãe chegou a casa
acompanhada por uma amiga, mulher de um mercador que tinha o seu
estabelecimento na Rua Nova, e disse, esbaforida, sentando-se sobre a arca da roupa:
está tudo louco. É a guerra. Rainiero, que viera buscar dois rolos de papel
grosso, a oficina do pai ficava perto, protestou: como pode ser? Não há guerra com
Castela há..., há. muitos anos! Mas era verdade. Jorge Costa participara nos
preparativos diplomáticos e nas conversações prévias para a empresa, já depois
de lhe ser concedida a abadia de Alcobaça, e o mundo não se encontrava em bom
estado também, o resto do mundo. Por Inglaterra, Eduardo IV apoiava o primo do
nosso Rei, Carlos de Borgonha, e desembarcava em Calais não tardaria muito.
Depois, como o filho de dona Isabel não chegou a horas ao encontro, não perdeu tempo.
Fez as pazes com o raposão do Luís XI de França, em Piquigny. E, durante o acto
de assinatura de paz, um aventureiro português que eu cheguei a conhecer,
Edward Brampton, aliás o judeu Duarte Brandão, por 1á assistiu. Existem no
mundo homens sem raiz e sem pátria que participam em tudo sem pertencerem a
partido nenhum...
Estávamos em Abril, a 25 de
Abril, e o Rei Afonso resolveu dar o poder ao filho para reger, governar e
proteger o reino. O Príncipe iria, pela primeira vez, já homem feito, com vinte
anos, mostrar o seu valor nas rédeas do governo e no campo militar, não como em
Arzila, mas como estratego e homem de diplomacia. Em Maio, já nos derradeiros dias
desse mês, Afonso partiu para a fronteira com vinte mil homens de cavalo e
infantaria. Entretanto, em Lisboa, a 18 de Maio, nascia-lhe um neto, Afonso.
Mais uma peça no tabuleiro para ser movida pelo pai, então um orgulhoso jovem,
Príncipe e progenitor de estirpe, no futuro jogo do poder peninsular. Afonso
limitava-se a defender as pretensões de sua sobrinha, filha de Henrique IV, e
os seus interesses como futuro senhor das duas coroas. Henrique IV era um homem
pesadão, enorme, barrigudo, louro, de olhos muito claros e pele branca de
leite. Olhava as pessoas com os olhos esbugalhados, salientes, redondos,
espantados, como se as visse sempre pela primeira vez. Casou pela segunda vez, por
questões políticas, com uma das mais belas mulheres do seu tempo, Joana, filha
mais nova de Duarte de Portugal e de Leonor de Aragão e Transtâmara. Dona Joana
vivera com a mãe no exílio de Toledo e era a mais nova, querida e pouco sensata
irmã de Afonso V. Morena, gaiata, alegre, azougada, vestindo luxuosamente,
mostrando, sempre que podia, os seus encantos a que nenhum homem resistia, entrou
mal e saiu pior ainda do leito daquele marido que não amava mulheres, diziam as
más línguas, e se as amava pouco ou nada conseguia porque (de novo as viperinas
informações da Corte) era impotente.
Por
debaixo daquela barriga mole não existia nada a não ser gordura e um pénis de
criança e a verdade é que, após catorze anos de casamento com Branca de Navarra
não houvera filhos e o casamento fora considerado nulo. E só ao fim de sete
anos dona Joana teve aquela filha muito parecida com todos menos com o pai. Ora
este, embora as suas relações com a Rainha tivessem sempre sido excelentes, tinha
certos amigos de preferência, a quem tudo oferecia e as más-línguas coruscavam
pelos corredores envenenando o bom ambiente que deveria ter a Corte. Possuía os
seus validos e, de entre eles, precisamente o belo e vicioso Beltran de la Cueva.
Quando as relações entre o valido e a Rainha se tornaram mais íntimas e ela
engravidou, obviamente que todos se prontificaram a atribuir a paternidade da
pobre criança nascida a Beltran e como a Rainha persistia com a sua costumada
leviandade, pelo menos aparente, porque à política e aos interesses da facção
oposta de Isabel e de Fernando de Aragão convinha que essa aura de malignidade
e de barreguice envolvesse a Soberana, todos encontraram para a criança tantos
pais quanto os gostos. A aleivosia de muitas das mulheres da Corte, invejosas da
bela Joana de Portugal, ajudou sempre a criar mau estar à Rainha. A pequenina
neta de Duarte esteve noiva de várias cabeças coroadas, de João de Portugal,
aos três anos, de Luís XI de França, do duque de Berry, que morreu envenenado,
talvez pelo irmão... Henrique de Castela, com a sua estúpida cabeça a estoirar de
dúvidas que só ele certamente poderia conhecer, chegou a negar a paternidade da
Princesinha. Depois, já doente, em Madrid, declarou a Princesa sua filha
legítima e única herdeira e pediu ao Rei Afonso de Portugal que aceitasse o governo
dos Reinos de Castela e os defendesse se quisesse casar com a Princesa.
Entretanto, finava-se o pobre e inútil Soberano e a jovem Beltraneja, infeliz desde o berço, nunca se libertando do nome que
os inimigos dos pais lhe deram e da desonra dessa origem, ficou entregue aos
cuidados do marquês de Vilhena e do arcebispo de Toledo. Como político, Afonso de
Portugal não valia nada. Como cavaleiro, era exímio defensor dos princípios
sublimados de generosidade e elevação espiritual postulados pelas leis da
cavalaria antiga». ?» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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