O fim como princípio de tudo
Morre
o corpo fica a fama
«(…) Cada vez mais curioso, o
Falcão surpreendeu-se quando o cortejo parou diante do Paço do Apar de S.
Martinho, mas logo descobriu a razão por que a comitiva entrara pela Porta do
Ferro e não pela Porta do Mar. Convencera-se de que a procissão seguiria colina
acima até ao castelo, mas quando chegaram diante do Paço do Apar, mesmo ali à
sua frente, ao desmontarem todos como se quisessem fazer um intervalo, ouviu
falas que o levaram a considerar que era ali o destino da trouxa que jazia na
carroça. Por enquanto só tinha uma certeza. Não podia chegar-se para não ser
visto, deveria manter-se na sombra, espiar em vez de intervir, até que, para
dar alimento à curiosidade, observou os esforços que os criados faziam para
resgatar o embrulho que vira dentro da carroça. Deitavam-lhe as mãos com
cuidado, tentavam pô-lo de pé, mas a múmia desmoronava-se, perdia o equilíbrio,
logo emparedada pelos homens que vira atrás da carroça. Foi então que os olhos
se lhe abriram mais do que a noite permitia. Caídos os panos, a visão
ofereceu-lhe a silhueta de el-rei, uma coisa por metade, quando a um soberano
se devia exigir que fosse inteiro.
Completo Fernando I não estaria,
partido em dois também não, nem era preciso, pois o Falcão num instante
descobriu a razão de tanta deformidade. O rei tossiu. Como ele tossia!
Engasgou-se, tossiu de novo, dobrou-se sobre si, e de cada vez que arrancava a
gosma da garganta mais se dobrava, sempre a ceder, até que os dois homens o
levaram de cadeirinha, mãos e braços cruzados para transportar el-rei. Valeu a
pena, considerou o Falcão sempre atento às manobras dos noctívagos. Depois
vieram-lhe ao pensamento certezas que antes eram só pressentimentos: nem mais
nem menos, é o nosso rei, pois então! Ignorante da razão por que traziam o rei
escondido, voltou a recorrer ao seu proverbial dom de adivinho: o pobre coitado
já não é quem era. Já sabia que el-rei estava doente, mas assim? Nah..., doença?
Cá para mim, está mais morto do que vivo.
O
reino precisava mais do que um homem bonito
Antes de fazer os vinte e dois
anos, com um percurso de vida fácil e sem ter de se expor a nada que o
desafiasse, Fernando I passeou pelo reino a sua elegância e porte varonil, um
regalo para todos quantos o miravam. Como quase todos os reis, era dado às
caçadas, montarias onde levava atrás de si dezenas de falcoeiros, homens que treinavam
os falcões e o ajudavam a abater as presas. Era também mulherengo incorrigível,
defeitos ou virtudes que faziam dele um modelo ao gosto dos portugueses do seu
tempo. Os súbditos conheciam-no, podia até dizer-se que era uma carta aberta
para eles e ninguém lhe levava a mal, de tão cativante que era. Para além da
mansidão e desleixo encantador, a sua atitude em relação à justiça foi desde
logo pautada por uma relação pragmática, bem diferente do justicialismo de seu
pai, Pedro I, este obcecado em castigar antes de ouvir as partes, como se na
sua cabeça a punição estivesse à frente da razão. Ao contrário do pai, Fernando
I permitia aos artífices das leis e do Direito que determinassem as penas e usassem
a justiça com parcimónia. No modo e nas diferentes aptidões que o monarca Fernando
I manifestava, era também conhecido como bom cavaleiro, temível nos torneios,
pois era bom justador (Justa, torneio que se fazia em praças cercadas, acometendo-se
os justadores uns contra os outros com lanças), óptimo lançador do tavolado (jogo
de exercício militar, consistia em lançar por terra um castelo de madeira),
braceiro (que atira longe pedras), invencível na luta corpo a corpo, alguém que
reunia todas as condições para substituir com vantagem o rei Pedro I, um
monarca que as gentes se habituaram a estimar e com ele partilhar noites de
estouvada folia». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor,
2017, ISBN 978-989-724-344-8.
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