«(…)
O silêncio morre fora dali. Daquele enclausuramento de paixões e inquietação, o
suor a escorrer entre os seios, a subir na pele das virilhas gretadas. Dos lábios
gretados da boca e da vagina. Tenta adormecer. Morrer seria um bálsamo? Revê-se
em cada linha que lê. Reconhece-se em cada parágrafo: na mudez de Maina ou na insanidade
apaixonada de Lola Valérie Stein, na imponderabilidade de Mariana Alcoforado...
E permanece acordada, madrugada dentro, rememorando as cartas que lhe traziam o
seu nome de volta e o de Henrique, como se ao longo dos séculos se tivessem encontrado,
ciclicamente amado e morto. Dilaceradamente. Quando começa a gemer alto, a enfermeira
aparece com a seringa na mão e injecta-a, enquanto ela pede em vão que o não faça.
Não quer conhecer de novo aquele espaço negro onde se afunda a caminho do nada.
(A lama pardacenta, que continua dentro de mim).
Senhor meu Marido
Escrevo esta missiva para vos comunicar
que cheguei sem novidade e encontrei todos de boa saúde e muito contentes com a
minha vinda. Sobretudo a prima Dora que, segundo já me deu a entender, se aborrece
bastante por cá, sozinha com as tias. Na verdade a viagem foi penosa para mim, Nunca
sabereis com que sacrifício cumpri as vossas ordens, vindo. Afinal afastar-me de
casa para quê e porquê? Falais de desobediência..., mas eu acato sempre as vossas
ordens e os vossos desejos! E a verdade é que não percebo o que será mais triste,
se esta minha obediência, se o vosso mando. Sei que ireis ficar zangado com o que
vos escrevo, mas aqui longe, por escrito, tenho mais coragem para dizer o que penso,
torna-se mais fácil enfrentar certas coisas que por hábito calo. Por certo que
até já me haveríeis batido se me tivesse atrevido a dizer-vos tudo isto antes de
partir. Vou pedir à prima que me deite estas linhas no posto, pois hoje fiquei na
cama com febre e dores de cabeça. Como costumais dizer, ah!, as tuas dores de cabeça!
Podeis crer que não desejaria de
modo algum ser um fardo, como já mo foi claramente dito... Então não me restam dúvidas
sobre o que o senhor meu marido pensa a meu respeito. Mas um casamento é para
toda a vida, ensinou-me minha mãe. E assim será connosco. Sem mais, sou atentamente
vossa.
Constança
H.» In
Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora,
2010, ISBN 978-972-252-242-7.
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