terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Goa ou O Guardador da Aurora. Richard Zimler. «Disse uma prece numa língua que eu desconhecia. Contei-lhe então que à borboleta de que ele falara chamávamos nós trevas azuis em português»

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«(…) E a que cheirava?, perguntou. Pensava que havia de cheirar a jasmim, pois estivera a comer da trepadeira do nosso alpendre, e eu era novo de mais para perceber mais do que isso. Mas tinha o ténue cheiro da terra. Ficou calado por uns momentos, ponderando as minhas palavras. Vou tentar impedir isso, disse-me. Impedir o quê? Até os mais pequenos animais observam as nossas vidas, respondeu. Pensei que ia continuar, mas não deu mais explicações. Continua a falar comigo, roguei-lhe. Diz o que te apetecer, mas não me deixes ficar aqui sozinho sem a tua voz. Os nossos murmúrios proteger-nos-ão aos dois, pensei. Enfiou o braço em berço debaixo da minha cabeça e começou a falar dos apaziguantes sons nocturnos que nos vinham da cidade lá em baixo. Deixei-me ir, a imaginar que estava com o meu pai, mas vi que fora um erro; espalhou-se o terror dentro de mim, centrado no ventre, frio, como um ser nado-morto. Levantei-me. Quem denunciara o meu pai à Inquisição (maldita)? A tia Maria? Wadi? Se calhar, fora alguém que eu nunca vira. Que se passa?, perguntou o meu companheiro. As recordações parece que às vezes me traem. E há alguém que preciso de encontrar. Tenho uma dívida a pagar. Não querem que estejas aqui, respondeu. Quem? Essas recordações de que tu falas. Querem que sejas livre. Não achas? Se querem, disse eu, céptico, não parecem ter lá grande estratégia para me ajudarem.
Disse uma prece numa língua que eu desconhecia. Contei-lhe então que à borboleta de que ele falara chamávamos nós trevas azuis em português. Agradou-lhe aquele som e disse que passaria a chamar-me Trevas Azuis. Ao sentir a meu lado o lento subir e descer do peito dele, apercebi-me da nossa fragilidade. Não tínhamos armas, nem preces nem argumentos que valessem alguma coisa. Só nos tínhamos um ao outro e isso nunca bastaria. Disse-me que os pais lhe tinham dado o nome de Ravindra, isto é, sol, mas toda a gente lhe chamava Phanishwar, Rei das Serpentes, desde o berço; uma noite, o pai fora encontrá-lo a dormir no pátio com uma cobra-capelo a guardá-lo. Não consigo lembrar-me dessa serpente em particular, disse. Mas é verdade que nunca tive medo delas como os outros homens. Os pais mandaram-no como aprendiz para junto de um encantador de serpentes de Poona quando ele tinha dez anos. Agora tinha cinquenta e sete. Até eu próprio ser pai também nunca me ocorreu que o meu pai poderia ter inventado a história da cobra-capelo para ajudar aos planos que tinha para mim, disse-me. Era mesmo dele. Como se preocupava connosco quando éramos crianças! Meu Deus! Percebes, queria ter a certeza de que todos nós tínhamos um modo de ganhar honestamente a vida. Que bom homem ele era, sempre a jejuar e a ir ao templo. Nunca conseguiu aceitar que os hindus e os muçulmanos matassem as serpentes como se estas não tivessem lugar no mundo. Phanishwar, tens de lhes mostrar que há outras maneiras de proceder, costumava dizer-me.
O teu pai ainda é vivo?, perguntei. Não, morreu há muito, e a minha mãe também. As tuas queimaduras..., devem doer muito. Não te aflijas, Trevas Azuis. Na minha vida sofri muitas dores físicas. A dor e eu somos velhos inimigos, que se conhecem na ponta dos dedos. Tentamos enganar-nos um ao outro, mas ela acaba sempre por vencer. Suporto-a de má vontade, é certo, não vou negar, mas acho que está só a fazer o papel dela e não tem por onde escolher. Ergui-me, voltei a embeber a camisa em água, e ajoelhei-me a seu lado. Pus-me a lavar-lhe os pés, e ele gemia, chorando baixinho, agradecendo-me a minha bondade. Não me lembrava de nenhuma voz de homem tão suave. Quando acabei, afagou-me a cabeça e abençoou-me. Nesse primeiro dia, Phanishwar pareceu-me representar tudo o que havia de bom nos camponeses com que tinha sido criado: as suas maneiras delicadas e a prontidão do sorriso; a sua aceitação das circunstâncias e uma certa crença de que a vida era um grandioso combate que mantinha a unidade do mundo; o deleite que sentiam com o nós, muito mais do que com o eu. Fala-me da tua vida, disse eu. Queria ouvir uma história, para me abandonar ao sono, conjurado por palavras sussurradas no escuro». In Richard Zimler, Goa ou O Guardador da Aurora, 2005, Gótica 2000, Difel, 2005, ISBN 978-972-792-145-0.
                                                                               
Cortesia de Gótica/Difel/JDACT