Catarina
Ataíde. Oaço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) Certa tarde de Outono, bordava
eu com as demais damas da infanta dona Maria na sala velha do Paço de Almeirim quando
de súbito, e a propósito de nada, Sua Majestade, a Rainha, me perguntou: que novas
tens desse teu poeta, dona Catarina Ataíde? Fiquei em sobressalto e as cores tingiram-me
o rosto de uma vermelhidão tal que todas as damas repararam. Foi por Deus que as
espirituosas e doutas irmãs Sigeia, Ângela e Luísa, bem como a minha boa amiga Paula
Vicente, filha do mestre Gil, vieram em meu auxílio. Vendo-me assim alvoraçada,
Ângela Sigeia e Paula Vicente foram de prestes buscar o alaúde, pondo-se a tanger
bem alto, a fim de distrair a Rainha. Dona Catarina é astuta e tem por uso
conhecer já a resposta para tudo o que pergunta. Entretinha-se, portanto, a pôr-me
à prova. Acabado o recital, deu uma festa ao seu podengo Bejayo, que batia ruidosamente
com a cauda no soalho, e tornou à conversa. O que sabes tu de Luís Vaz? Díz-me!
Ora, Alteza, quase nada sei, além dos sonetos que me escreve e de que vós tendes
conhecimento. Vistes por vossos olhos, Alteza, quão galante é Luís Vaz a poetar.
Com efeito, dona Catarina Ataíde, não é porém à poesia que me refiro, mas ao carácter.
Tens porventura conhecimento do auto que levou a cena com o nome El-Rei Seleuco?
Quer-me parecer que aí foi Luís Vaz longe de mais. Fui colhida de surpresa.
Luís Vaz nada me contara de tal auto. Só me falara a respeito de Lilodemo e dos
Enfatriões e até me representar partes inteiras, como se estivesse no Pátio das
Comédias, que muito bem me dispuseram.
Olhei de relance para Luísa Sigeia.
Iria defendê-lo? Luísa dominava o latim e o grego e terminara havia pouco um poema,
Sintra. Eu já prometera levar-lho a Luís Vaz, para que o lesse e sobre ele opinasse,
mas não foi Luísa quem me salvou. Eu estava na sala, irrompeu Paula Vicente,
com uma vénia. E se Vossa Alteza me permite, terei de discordar. Luís Vaz não pretendeu
outra coisa que não levar a cena uma comédia à moda de Plutarco. São bem caçadas
as personagens: Ambrósio, Lançarote, Frolalta, Martirn Chinchorro..., bem gostaria
de ter estado em palco, actuando, como no tempo do senhor meu pai, o Plauto Português.
Como ousava Paula Vicente contrariar a Rainha? Estás enganada, Paula Vicente, o
senhor teu pai, o nosso muito querido mestre e amigo Gil Vicente, como bem sabes,
posto que te encontras agora a compilar as suas obras, não pretendia magoar ninguém.
No Auto da Visitação, por exemplo, celebra o nascimento de El-Rei, meu marido.
Mas mesmo nas Barcas, em quem Tem Farelos, na Farsa de Inês Pereira, ou no último
auto que escreveu, Amadis de Gaula, sabia fazer-nos rir com o picaresco saber popular
das suas farsas e comédias. Lembro-me bem de como, a um tempo reproduzia a gíria
atrevida das gentes desta terra e usava belas e saborosas alegorias que nos
levavam a reflectir. Não é assim com Luís Vaz: disse-me a minha cunhada, a infanta
dona Maria, que, tal como vós, assistiu à representação, que aquilo que ali se passou
foi uma afronta. Veio de lá toda enxofrada! Confidenciou-me que o poeta escreveu
o auto de um dia para o outro, em cima do joelho e por encomenda de Estácio Fonseca.
Com tantos assuntos para levar a cena, foi precisamente dramatizar o tema doloroso
do filho apaixonado pela mulher do pai». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
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