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Catarina
Ataíde. Oaço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) Passei o mês de Março a rezar
agradecida pelo milagre da Ressurreição, porém não foi Cristo que em mim venceu
a morte, fui eu que das chagas fiz luz e da luz um lugar em que me aprazia flutuar.
Luís Vaz mandou-me um soneto. Antes de o poder ler fui obrigada a entregá-lo à camareira-mor,
que depois o levou ao mordomo, para o fazer chegar à Rainha. Afortunadamente, a
Rainha não lhe viu mal algum, antes uma arte sublime de grande poeta,
sobejando-lhe em talento o que lhe escasseava em linhagem. Pude por isso guardá-lo
para mim. Sei-o de cor, verso por verso, palavra por palavra.
«Um mover d'olhos, brando e piadoso,
sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;
um desejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
uma pura bondade, manifesto
indício
da alma, limpo e gracioso;
um encolhido ousar; uma brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:
esta foi a celeste fermosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento».
E nem os sábios conselhos de
Joana me demoveram. Aquela sugestão de amor em tão delicado soneto que de mim fazia
Circe, a feiticeira de Homero, foi transformando também meu pensamento. Todos os
pretextos me serviam agora para me deslocar ao palácio dos condes de Linhares
Estranham1ente, das duas vezes em que com ela me cruzei, lançou-me a condessa um
olhar tão altivo e desdenhoso que quase me fulminou. Quando primeiro a vi, ainda
me rugiu: então és tu Catarina, a filha de António Lima e de dona Maria Boccanegra,
dama de Sua Majestade? É a ti que elogiam a beleza serena? Os seus olhos
subiam-me e desciam-me dos pés ao toucado, detendo-se em particular nos seios e
na cintura. E quando cuidei que era terminada a inspecção, percebi que me enganara:
não se dando a condessa por satisfeita e desejando certificar-se com maior minúcia,
sacou de uma lupa e tornou a mirar-me de alto a baixo, como a uma escrava em dia
de mercado. Vacilei, mas ainda assim consegui responder-lhe: sim, senhora condessa,
sabeis bem quem é meu pai: camareiro-mor do infante Duarte.
Tentei apagar da memória aquele encontro,
mas o que não apaguei nunca foi o desassossego que senti em casa dos condes de Linhares:
o jeito intenso, desalvorado e experimentado com que Luís Vaz me tocava com as costas
da mão no rosto, segredando-me: de quantas graças tinha, a Natureza, fez um
belo e riquíssimo tesouro; e com, rubins e rosas. neve e ouro, formou sublime e
angélica beleza. E chamando-me depois ora Laura ora Beatriz, como Petrarca ou
couro Dante, e conduzindo-me para junto da namoradeira no vão da janela, frente
ao rio, e trazendo-me o brilho do rio para dentro dos olhos... Luís Vaz valia
todos os riscos e perigos». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
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