Papéis.
1991-2003
Escrever
por encomenda
«(…)
Numa das muitas casas em que morei quando era rapariga, todos os anos nascia um
pé de alcaparreira na parede voltada para leste. Era de pedra nua, mal
enjorcada, não havia semente que não encontrasse ali um torrão. Mas aquela
alcaparreira, sobretudo, crescia e floria de forma tão exuberante, e por outro
lado com cores tão delicadas, que me ficou na memória uma imagem de verdadeira
força, de suave energia. O camponês que nos alugava a casa ceifava as plantas todos
os anos, mas em vão. Quando embelezou a parede com reboco, aplicou-lhe uma
camada uniforme com as próprias mãos e depois pintou-a de um azul-celeste
insuportável. Esperei muito tempo, confiante, que as raízes da alcaparreira
mesmo assim levassem a melhor e de repente empolassem a lisura calma da parede.
Hoje, enquanto procuro a via das felicitações para a minha editora, ouço dizer
que isso aconteceu. O reboco criou bolhas, a alcaparreira explodiu com os
primeiros rebentos. Por isso desejo que a e/o continue a lutar contra o reboco,
contra tudo aquilo que harmoniza, apagando. Que o faça abrindo teimosamente. de
estação em estação, livros como flores de alcaparreira(o acontecimento a que se
faz referência é o décimo quinto aniversário das Edições e/o (1994); o texto,
em pé de página na carta, foi incluído no catálogo da editora impresso para
essa ocasião).
O
livro encenado
Caro
Sandro,
É
claro que tenho curiosidade, estou morta por ler o guião de Martone, assim que
o recebas, peço-te que mo envies imediatamente. Receio, porém, que lê-lo não
sirva para mais nada senão para satisfazer a minha curiosidade, que para mim se
resume a perceber o que há no meu livro que alimentou e está a alimentar o
projeto de filme de Martone, qual o seu ponto sensível que o texto tocou, como
é que desencadeou as suas capacidades imaginativas. Em relação ao resto, pensando
bem, prevejo vir a encontrar-me numa situação um tanto ridícula, um tanto
embaraçosa: serei leitora do texto de outra pessoa, que me contará uma história
escrita por mim; com base nas palavras dele, imaginarei aquilo que já imaginei,
vi, e fixei com palavras minhas, e esse segundo acto imaginativo, quer queira,
quer não, terá de se confrontar, de forma irónica?, de forma trágica?, com o
primeiro; portanto, serei leitora de um leitor meu, que me contará à sua maneira,
com os seus meios, com a sua inteligência e sensibilidade, aquilo que leu no
meu livro. Como reagirei, não sei dizer-te. Tenho medo de descobrir que pouco
sei sobre o meu próprio livro. Receio ver na escrita de outra pessoa (um guião
tem uma escrita especial, imagino, mas que pretende sempre contar uma história)
aquilo que eu realmente contei, e não gostar; ou de constatar a sua fraqueza;
ou simplesmente de me aperceber daquilo que falta, daquilo que eu devia ter
contado e por incapacidade, por medo, por escolhas literárias auto-limitadoras,
por superficialidade do olhar, não contei». In Elena Ferrante, Escombros,
2003, Relógio d’Água Editores, 2016, ISBN 978-989-641-666-9.
Cortesia
de Relógio d’AguaE/JDACT