Cortesia
de wikipedia e jdact
«Na
Primavera de 1966, num estado de grande agitação, Lila me confiou uma caixa de
metal que continha oito cadernos. Disse que não podia mais guardá-los em casa,
temia que o marido pudesse lê-los. Levei a caixa comigo sem fazer comentários,
afora uma menção irónica ao excesso de barbante com que o atara. Naquela fase, as
nossas relações estavam péssimas, mas parecia que essa impressão era apenas
minha. Ela, nas raras vezes em que nos víamos, não manifestava nenhum embaraço,
era afectuosa, jamais deixava escapar uma palavra hostil. Quando me pediu para
jurar que nunca abriria aquela caixa, por motivo nenhum, jurei. Mas assim que
me vi no comboio, desatei o barbante, tirei os cadernos da caixa e comecei a
ler. Não era um diário, embora ali figurassem relatos minuciosos de factos de
sua vida a partir do final da escola primária. Mais parecia o rasto de uma
teimosa autodisciplina de escrita. As descrições abundavam: um galho de árvore,
os pântanos, uma pedra, uma folha de nervuras brancas, as panelas de casa, as várias
peças da maquininha de café, o braseiro, o carvão e o atiçador, um mapa detalhadíssimo
do pátio, o esqueleto de metal enferrujado além dos pântanos, os jardinzinhos e
a igreja, o corte da vegetação à beira da ferrovia, os edifícios novos, a casa
dos pais, os instrumentos que o pai e o irmão usavam para consertar sapatos, os
seus gestos quando trabalhavam, sobretudo as cores, as cores de cada coisa em
diversas fases do dia. Mas não havia apenas frases descritivas. Aqui e ali
surgiam palavras isoladas em napolitano e italiano, às vezes contornadas por um
círculo, sem comentário. E exercícios de tradução do latim e do grego. E
trechos inteiros em inglês sobre as lojas do bairro, as mercadorias, o carreto
lotado de frutas e verduras que Enzo Scanno levava de rua em rua todos os dias,
puxando o burro pelo cabresto. E vários raciocínios sobre os livros que lia,
sobre os filmes que via na sala do padre. E muitas das ideias que defendera nas
discussões com Pasquale, nas conversas que tínhamos uma com a outra. Claro, o
andamento era descontínuo, mas qualquer coisa que Lila aprisionasse na
escritura adquiria relevo, tanto que mesmo nas páginas escritas aos onze ou
doze anos não achei uma só linha que soasse infantil.
Frequentemente as frases eram de
extrema precisão, a pontuação muito cuidada, a grafia elegante como a que nos
ensinara a professora Oliviero. Mas às vezes, como se uma droga lhe inundasse
as veias, Lila parecia não suportar a ordem que se impusera. Tudo então se
tornava árduo, as frases assumiam um ritmo sobressaltado, a pontuação
desaparecia. Em geral, lhe bastava pouco para retomar o andamento largo e
claro. Mas também acontecia de interromper-se bruscamente e preencher o resto
da página com desenhinhos de árvores retorcidas, montanhas corcundas e fumegantes,
caras assustadoras. Fui tomada tanto pela ordem quanto pela desordem, e quanto
mais lia, mais me sentia enganada. Esse exercício estava por trás da carta que
me enviara a Ischia anos antes: por isso era tão bem escrita. Recoloquei tudo
na caixa prometendo a mim mesma que não mexeria mais naquilo. Mas logo cedi de
novo, os cadernos desprendiam a força de sedução que emanava de Lila desde
pequena. Tinha tratado do bairro, dos parentes, dos Solara, de Stefano, de cada
pessoa ou coisa com uma precisão implacável. E o que dizer da liberdade que se
concedera quanto a mim, com o que eu dizia, com o que pensava, com as pessoas
que eu amava, até com meu aspecto físico. Tinha fixado momentos decisivos para
ela, sem se preocupar com nada nem com ninguém. Lá estava, nitidíssimo, o
prazer que sentira quando aos dez anos escreveu aquele conto, A fada azul. Ali estava, com
igual exactidão, o quanto havia sofrido porque a nossa professora Oliviero não
se dignara a dizer uma só palavra sobre aquele conto, aliás, o ignorara. Ali
estava o sofrimento e a fúria por eu ter passado à escola média sem me
preocupar com ela, abandonando-a. Lá estava o entusiasmo com que aprendera o ofício
de sapateiro, e o sentimento de revanche que a induzira a desenhar sapatos
novos, e o prazer de produzir um primeiro par com o seu irmão Rino. Lá estava a
dor quando Fernando, seu pai, dissera que os sapatos não eram bem-feitos. Havia
de tudo naquelas páginas, mas especialmente o ódio pelos irmãos Solara, a
determinação feroz com que rejeitara o amor do mais velho, Marcello, e o
momento em que decidira ficar noiva do afável Stefano Carracci, o salsicheiro,
que por amor quisera comprar o primeiro par de sapatos feito por ela, jurando que
o guardaria para sempre. Ah!, os belos momentos em que, aos quinze anos, se sentira
uma mocinha rica e elegante, de braço dado com o futuro esposo que, só porque a
amava, investira muito dinheiro na fábrica de calçados do pai e do irmão, a fábrica
Cerullo. E que satisfação ela experimentara: os sapatos da sua fantasia em
grande parte realizados, uma casa no bairro novo, o casamento aos dezasseis
anos. E que deslumbrante festade núpcias se seguira, como estava feliz. Depois
Marcello Solara, acompanhado do irmão Michele, aparecera no meio dos festejos
trazendo nos pés justamente os sapatos que o seu marido dissera apreciar tanto.
Seu marido! Com que tipo de homem se casara? Agora, facto consumado, arrancaria
a falsa cara e mostraria a outra, horrivelmente verdadeira? Indagações, e os factos
sem truques da nossa miséria. Dediquei-me muito àquelas páginas, por dias,
semanas. Estudei-as, acabei aprendendo de cor as passagens de que mais gostava,
as que me exaltavam, as que me hipnotizavam, as que me humilhavam. Por trás de
sua naturalidade havia com certeza um artifício, mas não soube descobrir qual».
In
Elena Ferrante, História do Novo Nome, 2011, Relógio d’Água, 2015, ISBN
978-989-641-544-0.
Cortesia de Rd’Água/JDACT