O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…)
Lamento ter-vos assustado… Não sabendo o que responder, Suger examinou o seu rosto.
As linhas de expressão podiam revelar muito sobre o estado de saúde, o temperamento
e até o destino das pessoas. Aprendera aquela arte em rapazinho com um curandeiro
judeu e desde então ela convertera-se numa pequena obsessão. O estrangeiro tinha
traços nórdicos e aristocráticos, quase inofensivos. As rugas da testa denotavam
uma têmpera robusta, de soldado, mas convergiam sobre o olho esquerdo formando uma
espécie de cruz. Mau sinal, pensou. Era um prenúncio de morte violenta. O homem
sorriu-lhe. Olhais-me como se fosse já cadáver. A forma como vos observo não é da
vossa conta, rebateu o médico, hostil. Seguistes-me e entrastes na minha casa com
prepotência. Agredir um magíster da Universitas é um acto grave, punido
severamente! O indivíduo endireitou as costas, quase em resposta à ameaça de uma
criança. Não temo a morte, mas a eventualidade de a minha empresa falir, revelou.
Se tiver de perecer, é meu desejo que alguém a continue. Nesse caso, seria melhor
terdes recorrido aos monges de Saint-Victor. Suger apontou-lhe a porta. Ainda estais
a tempo. Não, sois a pessoa indicada. O homem levou a mão à testa, esforçando-se
por se manter lúcido. Um laico, e ainda por cima... Eis a razão por que não hesitei
em seguir-vos. Julguei que queríeis tratar-vos. Não só. Sou um peregrino numa terra
estrangeira... Preciso de... Dobrou-se bruscamente, com um acesso de tosse. Suger
pousou o pilão e ajudou-o a endireitar-se. Estais a delirar, senhor. Dais-vos
conta disso? O homem estava nas últimas, cada vez mais pálido e a arder em febre.
Devia ter esgotado as forças enquanto o perseguira. Não... A minha missão... Abanou
a cabeça e abriu o saco que tinha no colo. É preciso que isto seja entregue a um
camarada meu que se encontra na cidade de Milão..., e tossiu uma vez mais.
O médico deixou escapar uma
pequena gargalhada nervosa. Até Milão? Sois louco? Levai-o vós, esse saco esfarrapado.
Farei tudo para o conseguir, podeis acreditar... Mas temo não viver o suficiente...
Suger interrompeu o discurso com um gesto impaciente. O homem, provavelmente
devido à dor e à perda de sangue, devia sofrer de confusão mental. Mas também estava
desesperado. Não temais, tranquilizou-o, seguindo a ética em prejuízo da prudência,
e estendei-vos no chão de modo a que possa observar-vos. Na verdade devia tê-lo
mandado deitar na sua cama, mas o homem estava imundo e ele odiava a porcaria. Se
não for esta ferida a matar-me, gemeu o desconhecido, estendendo-se no chão, será
o cavaleiro... Como já fez com o bom Wilfridus... Isso são coisas vossas, respondeu-lhe
o médico. Inclinou-se para ele e afastou o manto, descobrindo uma túnica ensanguentada
e queimada em vários sítios. Desatou o cinto, afastou o punhal e descobriu o tórax.
Como previra, a ferida era do lado esquerdo, debaixo das costelas, uma grande
laceração com quase três polegares e bastante profunda. A carne em volta emanava
cheiro a enxofre. Ao que parece, procuraram assar-vos num espeto. Estou vivo
por milagre, suspirou o homem. Tranquilizai-vos, ireis sobreviver. Suger pôs-se
de pé, pegou num frasco de cerâmica que estava em cima da mesa e debruçou-se novamente
sobre o paciente. Retirou a rolha com os dentes e derramou um líquido vermelho sobre
a ferida, que depois enxugou com um pano. Arde... O que é? Vinho. Utilizo-o para
lavar as feridas. Agora que a ferida estava limpa, podia distinguir os contornos.
Não lhe pareceu de difícil tratamento; no entanto, tinha um aspecto insólito.
Em volta da perfuração, a epiderme estava lacerada e queimada; e os tecidos internos
encontravam-se no mesmo estado. A voz do desconhecido distraiu-o das suas reflexões:
se fizerdes o que vos pedi, sereis devidamente recompensado... Recompensado?» In
Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor,
Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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