O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Por momentos, Suger afastou a
hipótese da confusão mental e perguntou-se se aquele homem não estaria mais lúcido
do que parecia. Fixou o seu rosto, mas reparou que estava prestes a perder os sentidos,
por isso afastou qualquer pensamento e, enquanto se concentrava, empunhou o fio
e a agulha. Assim que sentiu a picada na carne, o desconhecido dobrou-se e torceu
a boca numa expressão de dor. Tende paciência, pediu-lhe o médico, procurando
manter-se firme, estou a coser a ferida. Remendais-me como a um velho trapo?
Não cauterizais? O cautério servirá muito bem para marcar uma vaca, mas não,
seguramente, para tratar um ser humano. Suger mantinha os lábios cerrados e os olhos
fixos no seu trabalho, usando uma destreza que suscitaria a inveja de qualquer alfaiate.
Terminada a sutura, deu-se conta de que o paciente recuperara os sentidos e aproveitou
para retomar a conversa: quando referistes uma recompensa, faláveis a sério? O homem
era a máscara do sofrimento, mas, apesar disso, teve ainda força para se dobrar
e observar o tratamento. Depois continuou: se entregardes o objecto que este saco
contém..., recebereis uma pedra preciosa. A sua voz era fraca, mas perceptível.
Uma pedra preciosa? Foi o que eu disse... O desconhecido tentou manter-se sentado
no chão, mas a dor obrigou-o a estender-se. Uma pedra de draconite. Suger repetiu
a palavra saboreando cada sílaba. Draconite. Não se falava dela normalmente, e quando
tal acontecia era em ambientes eruditos. Era preciso ter estudado o Naturalis
Historia, de Plínio, o Velho, ou viajado por países longínquos, para conhecer
a existência dessa pedra.
O seu desconcerto não devia ter passado
despercebido ao homem, que o fixou insistentemente e carregou a dose: tendes alguma
ideia do que se trata? Existem pedras extraídas do interior dos animais, pedras
especiais com propriedades curativas, disse então Suger, voltando a mostrar-se
sério. A draconite, o draconitide, é a mais rara. Diz-se que provém da cabeça
do draco, uma serpente monstruosa. Apontou o dedo contra o interlocutor. Mas só
um ingénuo acreditaria nas vossas palavras. O desconhecido fixou-o, desdenhoso.
Afirmo a verdade, juro... E, como prova da minha sinceridade, vou recompensar-vos
por me terdes tratado, dando-vos uma coisa do mesmo tipo. Abriu um saquito de pele
que tinha prendido ao pescoço e entregou-lhe um estranho objecto. Pegai... e observai.
No início, Suger julgou ter entre as mãos um pequeno animal morto, depois compreendeu
que se tratava de outra coisa. Era uma pedra semelhante à raíz da mandrágora, mas
revestida de uma espécie de pele. Apercebeu-se do cheiro a mofo que exalava sem
conseguir perceber de que material era feita. Mas, entretanto/ reconheceu-a. Esta
é uma pedra curativa conhecida por caprius, revelou. Provém das vísceras
de uma cabra. Estais ao corrente do seu valor? Como qualquer médico que se digne,
embora nunca tenha visto nenhuma antes. Trata as secreções oculares, as úlceras
de estômago e as febres altas.
O estrangeiro concordou: a pedra
de draconite é mil vezes mais valiosa. Possui propriedades miraculosas. Ainda assim,
não desperdiceis o vosso tempo. Suger estava curioso, mas não a esse ponto.
Tinha bem mais em que pensar, o último dos seus problemas era prestar atenção
àquele estranho indivíduo. Ireis curar-vos da ferida, garanto. E relativamente a
tudo o resto, tratareis disso sozinho. Provavelmente tendes razão, mas não é certo...
O cavaleiro! O cavaleiro já me encontrou uma vez, mesmo depois de me ter escondido
em Paris. Irá fazê-lo de novo... Seja do que for que se trate, são coisas vossas.
Não me compreendeis, a missão é de importância vital...» In Marcello Simoni, O Manuscrito
nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN
978-989-724-169-7.
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