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Muito bem. Examinou os
marinheiros como se estes fossem demónios. Existem livros a bordo? Imagens? Não,
respeitável senhor. Antero acercou-se do comandante e do estranho e fingiu-se
horrorizado. Você é... Quero dizer, está a fazer essas perguntas por pertencer
à (maldita) Inquisição? Mas isto é
terrivelmente desagradável para mim. Como poderia eu saber que trabalha para a
Inquisição? Por favor, não quero que pense que tenho uma má opinião a seu
respeito, não era minha intenção ofender os costumes do seu país… Deixemos a
coisa assim, interrompeu-o o estranho. Você fala como se a sua vida dependesse
disso. Teria a gentileza, começou um dos guardas portuários, de nos mostrar a
carga, senhor comandante? Talvez o seu contramestre possa fazê-lo, o meu colega
poderá acompanhá-lo. Se entretanto pudéssemos ir preenchendo os documentos do
navio para a alfândega…? Claro que sim. Vamos até à minha cabina, o comandante
afastou-se na companhia do guarda portuário. O inquisidor seguiu-os na direcção
da cabina do comandante, enquanto o segundo guarda portuário se dirigiu, na
companhia do contramestre, para junto das escotilhas de carga.
O homem de Malagrida é que não! Antero
engoliu em seco. Aquele iria exigir ao comandante que lhe mostrasse os pacotes
com mercadorias que pertenciam aos membros da tripulação, acabaria por ver o
relógio no seu pacote e de imediato aperceber-se-ia de que ali havia algo que
não batia certo. Caro senhor inquisidor, disse ele e apressou-se a segui-los. Permite-me
que fale consigo um instante? O estranho estacou. Que mais quer? Antero
atraiu-o à parte. Revelar-lhe um segredo. É para isso que aqui está, para
sondar e revelar a existência de segredos, não é assim? O estranho franziu a
testa. Diga.
Foi sobretudo tecidos ingleses que
carregámos. Mas também sacas com meias de malha e alguns tapetes de lã. Isso
não me diz respeito. A questão é: o que irá o comandante receber a bordo quando
a carga tiver sido vendida? De certeza que me vai responder a isso já de
seguida. Antero falava em tom de segredo: ainda que, com isto, esteja a falar
contra o interesse dele, eu revelo-lho. Ele compra sal de Setúbal ou de Aveiro
e transporta-o para o mar Báltico. Lá é bastante procurado, pois precisa-se
dele para salgar os arenques. Um negócio astucioso. De seguida leva do Báltico
para Inglaterra madeira e pez para a construção naval. Está a fazer-me perder
tempo. Espere! Esta é apenas a história que se vê. Na verdade, porém, o
comandante é contrabandista! Neste navio não irá descobrir nada, mas eu sei
onde encontrará. Isto com certeza que lhe interessa… Vá ter com os guardas
portuários e conte-lhes essa história. Contrabandistas é coisa que não me
interessa. É mesmo? Ele contrabandeia livros! Daqueles que figuram no Índice
dos Livros Proibidos da Inquisição. Vende-os depois às escondidas, e a preços escandalosos,
aqui no seu país.
Nos olhos do estranho surgiu um brilho
incandescente. Onde tem ele os livros? O conhecimento tem o seu preço. Quanto
está disposto a pagar para que eu coloque a minha vida em risco e lhe mostre o
esconderijo? Um guarda portuário saiu através da escotilha da cabina do
comandante para o exterior. Trazia na mão direita algumas folhas de tabaco, a
mão esquerda segurava um relógio, que oscilava, suspenso. Isto pertence-lhe?,
perguntou ele, dirigindo-se a Antero. O discípulo de Malagrida olhou para o
relógio, depois, fixamente, para o rosto de Antero e disse: tabaco? E quer-me
você falar de contrabando? No convés, atrás dele, surgiu o comandante. Trazia
uma expressão séria. A fera não reagira ao relógio? Como seria isso possível? Naquele
terrível e singular momento, Antero apercebeu-se de tudo. Aquele jogo mortífero
ostentava a assinatura de Malagrida. Este tinha enviado os seus esbirros no seu
encalço: o comandante Wrightson, que lhe contara uma patranha acerca das
colónias e da sua velhice, para o atrair para junto da armadilha». In
Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, Casa das Letras, 2011, ISBN
978-972-462-047-3.
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