O
castigo maternal
«(…) Na transição de 1127 para
1128, penetra, pela primeira vez, no território comandado por dona Teresa e
Fernão Peres Trava, conquistando os importantes castelos de Neiva e Feira. As
tropas maternais pedem tréguas, mas as tentativas de negociação saem goradas
dos encontros de Vila Nova de Paiva.É, portanto, pouco depois que se dá a
batalha de São Mamede, ganhando esse nome ao lugar em que ocorreu. Contam os
relatos que aos nossos dias chegaram que não se terá a mesma arrastado pelo
tempo nem feito correr demasiado sangue ou levantado, sequer, muitas dúvidas
acerca daquele que seria o seu vencedor. Senhor, já, de um maior e melhor apetrechado
número de tropas, derrotou com relativa facilidade Afonso Henriques o exército
de dona Teresa e Fernão Trava. É posto o embate que nasce o mito.
Como terá castigado o pouco piedoso príncipe os vencidos daquela batalha, ainda
que se tratassem de sua mãe e respectivo esposo? Tê-los-á castigado sequer? Os
historiadores não encontram provas que atestem a veracidade da tese segundo a
qual Afonso bateu em dona Teresa e, depois, a deixou a ferros num cárcere em Coimbra,
desconhecendo-se o destino traçado a Fernão Trava. Contudo, não sobreviveram,
de igual modo, provas que sustentem o contrário; aliás, investigando não
encontraremos na História qualquer relato que indicie uma resposta de Trava ou
de dona Teresa, o que seria tanto mais estranho quanto ambos sabiam,
perfeitamente, dos desejos expansionistas do futuro Afonso I. Teriam ficado
aquietados na sua liberdade, aguardando e assistindo como meros espectadores ao
progresso do aventureiro jovem, nada tornando a encetar para o demover de tais
acções? Parece estranho, como estranhos parecem a coincidência que teria hora
mar cada para os últimos anos de vida do rei, tal como veremos adiante, e o
episódio do Bispo Negro.
Resta, assim, espaço lógico para
o sentido lendário. Sabemos que dona Teresa entrou para um convento na Galiza
naquele mesmo ano, onde viria a falecer passados mais dois, isto é, em 1130.
Mas, antes disso, teria o filho colocado a mãe a ferros. Colérica, tê-lo-á
amaldiçoado com as seguintes palavras: Afonso, meu filho, prendeste-me e
deserdaste-me da terra e honra que me deixou meu pai, e afastaste-me de meu
marido. A Deus peço que preso sejais vós, assim como eu me vejo agora. E porque
puseste ferros em minhas pernas, que vos ajudaram a trazer e a criar com muitas
dores do meu ventre a fora dele, com ferros sejam as vossas pernas quebradas, e
praza a Deus que assim seja.
Afonso prosseguiu a sua missão,
independentemente de estas ou outras profecias terem sido alguma vez
proferidas, sem qualquer sinal de remorso ou arrependimento. Estava mais
confiante do que nunca nas suas capacidades, bem como na dedicação daqueles que
o seguiam, e principiava a estender os seus braços bem para lá das muralhas do
castelo que ficaria poeticamente conhecido como o berço de Portugal. Não se
sabe se, em alguma manhã, o rei terá despertado durante o assalto dos fantasmas
daquela maldição, mas o povo temia que, um dia, anjos nefastos de Deus se
abeirassem dos seus lugares, a fim de lhes soprar a profetizada excomunhão do
seu senhor. É do meio desta nuvem fria e difícil de investigar que surgiria o
Bispo Negro, para sobressalto dos mais supersticiosos e teste à firmeza do
jovem rei. Haviam chegado a Roma as notícias do sucedido em São Mamede e em Coimbra,
bem como os lamentos e maldições de dona Teresa. E, agora, a Igreja enviava um
homem a quem chamavam de bispo e cuja tez negra foi estranhada no condado.
Chegava debaixo de moderado segredo, com o objectivo claro de concretizar não só
a excomunhão de Afonso Henriques, mas a de todo o território portucalense, caso
não se aceitasse libertar dona Teresa do cárcere.
Tendo chegado a solo português,
rapidamente se espalhou entre os populares a notícia da chegada do bispo e os
intentos por detrás daquela deslocação. O bispo visitou o rei e apresentou-lhe
as cartas do Santo Padre, mas de pronto lhe respondeu Afonso que ordem de ninguém
o faria alterar o juízo sobre o que seria mais favorável ao seu reino. E assim
sendo, ao cair da noite, o bispo excomungava toda a terra e preparava-se para
fugir. Mal chegando tal agouro aos seus ouvidos, deslocou-se o rei à Sé, onde estavam
reunidos todos os cónegos e vários outros homens de Igreja e, perguntando se
ali havia algum bispo, todos se afastaram, quedando-se um, o estrangeiro de
pele negra. Uma vez sozinhos naquele lugar, bradou-lhe o rei que, se ele era
bispo, lhe celebrasse uma missa. Respondeu o bispo que não havia sido ordenado
bispo e que não o poderia fazer, ao que Afonso reagiria de modo ainda mais
autoritário, dizendo-lhe que ele próprio o ordenava bispo naquele instante,
repetindo-lhe que lhe celebrasse uma missa. Tomado pelo medo, vestiu Martim
Suleima os paramentos de bispo e tratou de satisfazer os desígnios de el-rei. De
novo, as notícias correriam até Roma e o Papa, convicto da heresia de Afonso,
enviava, agora, um cardeal com a missão de lhe ensinar a Fé». In Alexandre
Borges e Hugo Rosa, Histórias Secretas de reis portugueses, Oficina do Livro,
2012, ISBN 978-989-555-663-2.
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