segunda-feira, 5 de março de 2018

Histórias Secretas de reis portugueses. Alexandre Borges e Hugo Rosa. «Afonso, meu filho, prendeste-me e deserdaste-me da terra e honra que me deixou meu pai, e afastaste-me de meu marido»

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O castigo maternal
«(…) Na transição de 1127 para 1128, penetra, pela primeira vez, no território comandado por dona Teresa e Fernão Peres Trava, conquistando os importantes castelos de Neiva e Feira. As tropas maternais pedem tréguas, mas as tentativas de negociação saem goradas dos encontros de Vila Nova de Paiva.É, portanto, pouco depois que se dá a batalha de São Mamede, ganhando esse nome ao lugar em que ocorreu. Contam os relatos que aos nossos dias chegaram que não se terá a mesma arrastado pelo tempo nem feito correr demasiado sangue ou levantado, sequer, muitas dúvidas acerca daquele que seria o seu vencedor. Senhor, já, de um maior e melhor apetrechado número de tropas, derrotou com relativa facilidade Afonso Henriques o exército de dona Teresa e Fernão Trava. É posto o embate que nasce o mito. Como terá castigado o pouco piedoso príncipe os vencidos daquela batalha, ainda que se tratassem de sua mãe e respectivo esposo? Tê-los-á castigado sequer? Os historiadores não encontram provas que atestem a veracidade da tese segundo a qual Afonso bateu em dona Teresa e, depois, a deixou a ferros num cárcere em Coimbra, desconhecendo-se o destino traçado a Fernão Trava. Contudo, não sobreviveram, de igual modo, provas que sustentem o contrário; aliás, investigando não encontraremos na História qualquer relato que indicie uma resposta de Trava ou de dona Teresa, o que seria tanto mais estranho quanto ambos sabiam, perfeitamente, dos desejos expansionistas do futuro Afonso I. Teriam ficado aquietados na sua liberdade, aguardando e assistindo como meros espectadores ao progresso do aventureiro jovem, nada tornando a encetar para o demover de tais acções? Parece estranho, como estranhos parecem a coincidência que teria hora mar cada para os últimos anos de vida do rei, tal como veremos adiante, e o episódio do Bispo Negro.
Resta, assim, espaço lógico para o sentido lendário. Sabemos que dona Teresa entrou para um convento na Galiza naquele mesmo ano, onde viria a falecer passados mais dois, isto é, em 1130. Mas, antes disso, teria o filho colocado a mãe a ferros. Colérica, tê-lo-á amaldiçoado com as seguintes palavras: Afonso, meu filho, prendeste-me e deserdaste-me da terra e honra que me deixou meu pai, e afastaste-me de meu marido. A Deus peço que preso sejais vós, assim como eu me vejo agora. E porque puseste ferros em minhas pernas, que vos ajudaram a trazer e a criar com muitas dores do meu ventre a fora dele, com ferros sejam as vossas pernas quebradas, e praza a Deus que assim seja.
Afonso prosseguiu a sua missão, independentemente de estas ou outras profecias terem sido alguma vez proferidas, sem qualquer sinal de remorso ou arrependimento. Estava mais confiante do que nunca nas suas capacidades, bem como na dedicação daqueles que o seguiam, e principiava a estender os seus braços bem para lá das muralhas do castelo que ficaria poeticamente conhecido como o berço de Portugal. Não se sabe se, em alguma manhã, o rei terá despertado durante o assalto dos fantasmas daquela maldição, mas o povo temia que, um dia, anjos nefastos de Deus se abeirassem dos seus lugares, a fim de lhes soprar a profetizada excomunhão do seu senhor. É do meio desta nuvem fria e difícil de investigar que surgiria o Bispo Negro, para sobressalto dos mais supersticiosos e teste à firmeza do jovem rei. Haviam chegado a Roma as notícias do sucedido em São Mamede e em Coimbra, bem como os lamentos e maldições de dona Teresa. E, agora, a Igreja enviava um homem a quem chamavam de bispo e cuja tez negra foi estranhada no condado. Chegava debaixo de moderado segredo, com o objectivo claro de concretizar não só a excomunhão de Afonso Henriques, mas a de todo o território portucalense, caso não se aceitasse libertar dona Teresa do cárcere.
Tendo chegado a solo português, rapidamente se espalhou entre os populares a notícia da chegada do bispo e os intentos por detrás daquela deslocação. O bispo visitou o rei e apresentou-lhe as cartas do Santo Padre, mas de pronto lhe respondeu Afonso que ordem de ninguém o faria alterar o juízo sobre o que seria mais favorável ao seu reino. E assim sendo, ao cair da noite, o bispo excomungava toda a terra e preparava-se para fugir. Mal chegando tal agouro aos seus ouvidos, deslocou-se o rei à Sé, onde estavam reunidos todos os cónegos e vários outros homens de Igreja e, perguntando se ali havia algum bispo, todos se afastaram, quedando-se um, o estrangeiro de pele negra. Uma vez sozinhos naquele lugar, bradou-lhe o rei que, se ele era bispo, lhe celebrasse uma missa. Respondeu o bispo que não havia sido ordenado bispo e que não o poderia fazer, ao que Afonso reagiria de modo ainda mais autoritário, dizendo-lhe que ele próprio o ordenava bispo naquele instante, repetindo-lhe que lhe celebrasse uma missa. Tomado pelo medo, vestiu Martim Suleima os paramentos de bispo e tratou de satisfazer os desígnios de el-rei. De novo, as notícias correriam até Roma e o Papa, convicto da heresia de Afonso, enviava, agora, um cardeal com a missão de lhe ensinar a Fé». In Alexandre Borges e Hugo Rosa, Histórias Secretas de reis portugueses, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-663-2.

Cortesia de OdoLivro/JDACT