O
castigo maternal
«Está
protegida pelos séculos a verdadeira história do primeiro rei português. Aquele
que tenha sido e aquilo que tenha feito Afonso Henriques jamais poderá ser
trazido à luz do dia no esplendor da real decorrência dos factos. Dele se diz
que era um gigante de quase dois metros de altura, que fez nascer um reino à
força quase exclusiva da sua imensa bravura, que incendiou batalhas à frente
das suas tropas, empunhando uma espada imensa que Sebastião I pediria
emprestada e faria consigo desaparecer, mais de 400 anos depois, na infame
jornada de Alcácer Quibir. De tudo isto, que será verdade? Que pormenores foram
gerados apenas pelo imaginário colectivo de um país necessitado de heróis?
Ter-se-á o jovem nobre tornado Afonso I pela dinâmica de um processo que o
levou a bater em dona Teresa, a própria mãe? Será este somente um rodapé
ficcional acrescido ao texto verídico pela voz popular? É talvez, hoje, impossível
discernir. Resta-nos juntar os pedaços da lenda aos da História e perscrutar, senão
a verdade, pelo menos um sentido que atravesse os mistérios de um tempo iniciático,
envolto nas trevas comummente atribuídas às memórias medievais.
Afonso perdeu o pai bem antes de
se poder aperceber do que esse acontecimento implicava para o seu próprio
destino. O conde Henrique falecia contava o filho três inofensivos anos,
ficando o Condado Portucalense entregue ao arbítrio da esposa, dona Teresa. O
passar dos anos e o crescimento da criança a fazer-se homem revelaria uma dona Teresa
não tanto em sintonia com o desejo do marido defunto de fazer o condado descer
pelas terras dos sarracenos, mas antes em aproximá-lo da Galiza. Ao jovem de 11
anos deparava-se, sobretudo, um outro dado que não podia compreender: a mãe parecia
ter esquecido, rapidamente, a memória do pai e, depois de outros envolvimentos,
perdia-se de amores por Fernão Peres Trava, um nobre galego com o qual, se não
casou, terá, pelo menos, passado a viver maritalmente em Coimbra, numa relação
classificada de incestuosa pelas tábuas de valores da época, tendo em conta o
anterior relacionamento de Teresa com Bermudo, outro membro do clã Trava, irmão
do seu novo esposo.
Estávamos em 1121. A ira
avolumava-se dentro do infante, que sentia, não se sabe se nos genes, se no
resto difuso de uma recordação efectiva, o ímpeto de prolongar os anseios
paternos. É neste percurso que se dirige sozinho, no dia de Pentecostes, à
Catedral de Zamora, território leonês, e se arma cavaleiro, ainda adolescente,
acabado de completar 16 anos, a maioridade política de então, num gesto
elucidativo do seu carácter destemido e solitário, inspirado no que haviam
feito outros futuros monarcas da História, à espera da ordem de ninguém para
avançar quando quer que o decidissem fazer. Subiu ao altar de São Salvador e
colocou sobre o seu corpo as armas militares que de lá retirou. Não o fizeram o
seu pai morto, a sua mãe apartada, o arcebispo de Braga, possivelmente o inspirador
de tal acto. Uma espada, um escudo, um elmo, um cinto, uma loriga.
A distância entre mãe e filho
agravava-se, até que, pouco tempo mais tarde, no Verão de 1127, decidiam-se
descongestionar os seus poderes e concordava-se que Afonso governasse até ao
Douro, a partir de Guimarães, e dona Teresa daí ao Mondego, com sede na mesma
cidade em que vivia com Ferrão Peres Trava. Mas era claro para qualquer um
deles que tal não bastaria para assegurar a paz eterna entre as partes e já as
classes sociais tomavam partido por uma ou outra das facções. A tensão
acumulava-se e Afonso nada fazia por evitá-la. Estávamos quase em 1128 e chega
aos ouvidos de Afonso VII, rei de Leão e Castela, o rumor de que o príncipe
granjeava já mais poder do que aquele que alguma vez se esperaria em tão pouco
tempo, escapando ao domínio da mãe e desejando fazer frente à sombra
castelhana. Apercebendo-se da gravidade que constituía o conhecimento de tal
afronta e do cerco que já se montava em torno do castelo de Guimarães,
apressou-se o aio Egas Moniz em viajar até àquele território para falar ao rei
Afonso VII, tentado dissuadi-lo de qualquer intuito de anular o constrito círculo
em que ordenava Afonso Henriques. Explicou que tal não passava de uma perigosa mentira,
que Afonso nada mais nutria por Leão e Castela de que uma imensa admiração e
respeito e que, como prova disso mesmo, ali se deslocaria para beijar a mão ao
senhor de tão grandioso poderio militar.
Contudo, de regresso ao Castelo
de Guimarães e confessando a sua acção, teve Egas Moniz de se curvar, pela
primeira vez, diante da fúria do infante. O orgulho do jovem Afonso jamais se
poderia compadecer de semelhante cobardia e, ainda que tenha perdoado ao seu
amado aio, negar-lhe-ia, liminarmente, qualquer hipótese de, alguma vez, vir a
corresponder a tal promessa. Pelo contrário, tornar-se-ia ainda mais feroz e célere
nos seus objectivos de expansão e preparava-se, desde logo, para o seu primeiro
combate, um confronto difícil e inqualificável que, mais do que uma questão bélica
e política, colocava frente a frente um filho e uma mãe». In Alexandre Borges e Hugo Rosa, Histórias
Secretas de reis portugueses, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-663-2
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