«(…) António Vieira gaba-se diversas
vezes de possuir um livro joaquimista a que dava o nome de Rusticano e que foi publicado em
Veneza no ano de 1516, mas também este livro não passa de uma compilação de
profecias tardias e, apesar de tantas vezes referido por Vieira, pouco lhe
influenciou o pensamento. Há três profecias da escola joaquimista que se encontram
em muitos cartapácios portugueses e foram frequentemente comentados pelos
tratadistas. A primeira é a frase: cujus
nomen quinque apicibus scriptum est, isto é: cujo nome se escreve
com cinco ápices. Foi tirada de uma profecia atribuída à Sibila Eritreia,
mas, na realidade, data dos meados do século XIII, e, no seu contexto original,
o passo aplicava-se à pessoa do imperador Isaac Angelos de Bizâncio (m. 1204).
Os sebastianistas ortodoxos, interpretando (erradamente) a palavra ápice no
sentido de sílaba, viam na profecia uma clara alusão ao nome de Sebastião I,
cujo nome em Latim se compõe de cinco sílabas: Se-bas-ti-a-nus. Mas Vieira, que em dada altura defendia
a tese de ser João IV o Encoberto, explicava o termo ápice como pontinho
que se põe sobre o i e via a profecia cumprida na grafia ioannes iiii.
A segunda profecia é o opúsculo
apócrifo Vaticínios sobre os Papas,
uma parte do qual data da primeira década do século XIV, e outra de cerca de
1355. Apesar de muito heterogéneas, as duas partes aparecem unidas desde o fim
do século XIV. Fragmentos destas profecias entraram no Jardim Ameno, e o texto integral,
com a tradução portuguesa, no Catálogo
das Profecias. E, finalmente, é muitas vezes citada uma frase
tirada do chamado Oráculo Angélico,
composto no fim do século XIII. Este oráculo teria sido oferecido por um anjo a
São Cirilo, um dos primeiros padres-gerais o Carmo, que enviou o texto obscuro
ao abade Joaquim, com o pedido de o esclarecer com algumas glosas. Em diversos
cartapácios a frase em questão apresenta a forma seguinte: No tempo de 1554 nascerá o Sol, e estará
eclipsado e escondido por algum tempo, e será lastimado com o aguilhão de
desprezo numa pequena cova de três ou quatro repartimentos, cercado de grandes
grades. Guardá-lo-ão escorpiões, e depois senhoreará o Mundo.
O texto é um arranjo feito de
alguns grupos de palavras que se acham espalhadas pelos capítulos I e II do Oráculo Angélico e se
referem à luta por Nápoles entre a Casa de Anjou e a de Hohenstaufen. O arranjo
mostra como os sebastianistas pouco se incomodavam com a origem e o contexto
das suas profecias: perfilhavam-nas e modificavam-nas (por exemplo: no tempo de
54 (1254) mudaram em: no tempo de 1554, apropriando-as à sua causa. Mas
temos razões para acreditar que eles não foram os primeiros violentadores de
textos proféticos. Quem estiver a par deste género literário deve saber que
essas deturpações já tinham sido praticadas em outros países da Europa, muito
tempo antes de nascer o sebastianismo.
As trovas do Bandarra
A vida do Bandarra
Quase tudo o que se sabe
seguramente da vida de Gonçalo Anes Bandarra consta do seu processo inquisitorial,
publicado por Teófilo Braga na segunda metade do século passado. Deve ter
nascido por volta de 1500 na vila de Trancoso, onde viveu toda a sua vida, exercendo
o ofício de sapateiro. Antes da publicação do seu processo, julgava-se que Bandarra
foi sempre pobre e de origem muito modesta. Mas na sua declaração ao Tribunal
lemos que fora rico e abastado, mas que queria mais sua pobreza em dizer a verdade
e o que cumpria à sua consciência, que não dizer outra cousa. Também se
julgava que o sapateiro não sabia ler nem escrever, mas que costumava ditar as
suas profecias ao padre Gabriel João, o qual seria seu amanuense, tal como o
fora Baruch do profeta Jeremias. Hoje sabe-se que ele não era analfabeto.
Mantinha correspondência com
várias pessoas do Reino, entre as quais se contavam figuras de destaque, tal
como o doutor Francisco Mendes, médico do cardeal-infante Afonso. Lia e relia a
Brívia em linguagem (a Bíblia em vernáculo) sem dúvida um texto escrito
à mão, que tomara emprestado a um certo João Gomes Gião e guardara uns oito
anos em casa». In José Van Den Besselaar, O Sebastianismo, História Sumária, Instituto
Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, volume 110,
Livraria Bertrand, 1987.
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