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«(…) Dotado de memória
fidelíssima, sabia de cor longos trechos da Escritura Sagrada, sobretudo dos
livros proféticos. Quando, depois de restituir o livro ao seu dono, já não se
lembrava de um texto bíblico, recorria ao dr. Álvaro Cardoso ou ao clérigo
Bartolomeu Rodrigues, que tinham uma Bíblia latina e com ela lhe refrescavam a
memória. Assim chegou a ser um oráculo em assuntos bíblicos, sobretudo entre os
cristãos-novos, que eram muito numerosos na Beira. O sapateiro devia ter também
grandes conhecimentos das profecias atribuídas a Santo Isidoro, através das Coplas do cartuxo
castelhano Pedro Frias e outros versejadores espanhóis, entre eles, o frade
bento Juan Rocacelsa, monge de Monserrate. Estas coplas convenceram-no da vinda
de um Rei Encoberto, predestinado para desbaratar o Império Otomano e estabelecer
a Monarquia Mundial. É muito provável que Bandarra tivesse chegado à ideia de
compor as suas trovas tomando por exemplo as coplas do país vizinho, tanto mais
que estas designavam muitas vezes o futuro Imperador como Infante de
Portugal. O sapateiro era sem dúvida, um homem extraordinário, que aliava à
memória fabulosa uma grande faculdade assimiladora e o talento de fazer versos
em estilo popular.
As suas profecias rimadas, muito
mais bíblicas e, igualmente, mais patrióticas que as dos seus modelos castelhanos,
difundiram-se rapidamente pelo país, não tardando a encontrar leitores até na
capital do Reino. Os cristãos-novos, que já antes o tinham consultado como uma
espécie de rabi, passaram agora a venerá-lo como um profeta solidário com eles
nas suas esperanças messiânicas. Sabemos que, por duas vezes, Bandarra se deteve
algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela gente
de nação. O alvoroço que aí causava não podia deixar de despertar as suspeitas
da Inquisição (maldita) recém-estabelecida. O poeta foi preso
na sua terra e levado para Lisboa (1540). A Mesa ouviu várias testemunhas e, a
3 de Outubro de 1541, impôs-lhe um castigo relativamente brando: o de abjurar solenemente
as suas trovas na procissão do auto-de-fé no dia 23 do mesmo mês. Pela sentença
se pode ver que Bandarra não era acusado de judaísmo, nem sequer era pessoa
suspeita como cristão-novo. O que se lhe imputava era causar alvoroço entre os
cristão-novos com as suas trovas, que eles tendiam a interpretar em sentido
judaico. Além disso, era intolerável que um homem sem letras se arvorasse em
intérprete dos livros sagrados. A lição que a Mesa lhe queria incutir era simplesmente
esta: Sapateiro, não vás além do calçado!. A Mesa ordenou ainda que
qualquer pessoa que tivesse em seu poder as trovas do dito Bandarra as apresentasse
ao Santo Ofício (maldito) dentro de certo prazo.
A partir de 1541 não se soube
mais nada do sapateiro de Trancoso. Segundo uma opinião muito divulgada teria
falecido por volta de 1550. Mas, como já observou Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, a data da
sua morte deve ser posterior a 1556, porque a 23 de Março deste ano foi
confirmado na dignidade episcopal da diocese da Guarda João Portugal, a quem
Bandarra enviou um exemplar das suas Trovas
com uma dedicatória elogiosa em versos. Se aceitarmos a dedicatória como
autêntica, e creio não haver motivos para lhe pôr em dúvida a autenticidade,
devemos concluir que o profeta, uns quinze anos depois da solene abjuração das
suas trovas, no foro íntimo ainda acreditava nelas, e que o bispo da Guarda, homem
brioso e até disposto a provocar as autoridades, se dignou aceitá-las». In José
Van Den Besselaar, O Sebastianismo, História Sumária, Instituto Camões,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, volume 110,
Livraria Bertrand, 1987.
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