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O
fogo de Maria
«(…) Ouve, Maria Angelina..., se
me garantires que vais acatar as ordens da tua mãe e da tua irmã, eu falo com o
arruaceiro do teu cunhado e dou-lhe um susto que o há-de trazer aquietado, já
que o teu pai não tem peito para o enfrentar. E o que lhe vai dizer para o
amedrontar? Isso são coisas de gente crescida. O Senhor também aos grandes
corrige, sabes? Há que seguir os seus caminhos e advertir quem não os segue.
Mas agora sossega essa cabecinha, volta para casa e deixa o resto comigo. Sim,
senhor prior. A sua bênção. Deus te abençoe, Maria Angelina. Ele há-de ter uma
vida de grandes feitos guardada para ti. Quando for maior e tiver forças, vou
defender a minha irmã dos maus-tratos daquela peste. A julgar pelas ganas que te
correm no sangue, hás-de defender todos quantos de ti precisarem! Vá, ala para o
lar, que já se vai fazendo tarde. E lá partiu a pequena Maria Angelina, puxando
para cima a saia que se lhe desprendia do pano torcido que a prendia à cinta, galgando
os prados e subindo as ligeiras colinas dos dois quilómetros que separavam a igreja
e o mosteiro de Fontarcada da sua exígua casa em pedra granítica, no lugar de Simães.
E como era bela a paisagem que rodeava
aquele enclave viçoso no coração do Minho! Aninhada entre os vales desenhados pelos
rios Ave e Cávado, a vila de Póvoa de Lanhoso, onde se inseria o antigo couto de
Fontarcada e os seus limites, engalanava o distrito de Braga com a maravilha dos
seus recantos. Planos ou em declive, extensos e férteis campos de lavoura e áreas
florestadas cobriam quanto a vista alcançava ao redor, numa mescla de tons pastel
e exuberâncias de cor. Mas se os olhos se regalavam com a oferenda do cenário povoense,
não menos encantava a música dos sons da terra, presente na voz dos pássaros
que lhe percorriam os céus e no suave canto das águas dos seus ribeiros, a que os
sinos das igrejas se juntavam. Do alto do seu castelo centenário, parecia que o
Minho inteiro se lhe desenrolava aos pés. Delimitado pelas terras fronteiriças de
Amares, Fafe, Guimarães, Vieira do Minho e Braga, e pelas circundantes serras do
Carvalho, do Gerês e da Cabreira, o território de Póvoa do Lanhoso, dada a sua privilegiada
situação geográfica e estratégica, fora, desde eras já esquecidas, cobiçado
pelos vários povos que o habitaram.
Rezava
que ainda nem o Senhor Jesus Cristo nascera, já gentes lhe pisavam os chãos de
que logo os romanos se apoderaram, trazendo consigo velhos e doutos saberes e a
santa fé cristã. Por ali desfilaram ainda nobres e reis, fidalgas e rainhas, deixando
marcas da sua presença. Fora o caso de Godinho Fafes, ou Falifaz, pai do
alferes-mor do conde Henrique, que, em 1067, ali fez alevantar o templo e o mosteiro
de Fontarcada, ou de São Salvador, orago da freguesia, cuja coutada se tornou pertença
dos frades beneditinos. Também Dinis I, vendo a fortaleza em ruínas, a mandou restaurar,
em nome da defesa do reino, concedendo foral ao concelho de Lanhoso em 1292. Essas
histórias sabia-as Maria Angelina todas de cor, de tanto as ouvir contar ao padre
da paróquia, tal como de cor conhecia todas as capelinhas dos pios arredores, desde
a da sua povoação de Simães, em honra de S. Francisco, às de S. João, Santa Luzia
e Santo António, em lugares cercanos. Eram, todas elas, palco anual das celebrações
dos seus santinhos. Nenhuma das capelas, porém, se se comparava à da igreja matriz
de Fontacarda, na sua nudez de paredes de pedra e de arcos românicos, cujo tímpano
do portal ostentava o Cordeiro de Deus, que a pequena passava horas a contemplar.
Hei-de casar-me aqui!, dizia Maria
Angelina ao padre João. Então, tens de aprender a sua história, retorquia ele. E
a menina, ávida de lhe provar que seria digna de um dia, naquele santo chão, vir
a receber a bênção de Deus Nosso Senhor para o seu matrimónio, lá repetia que aquela
fora fundada no século XI, e que sofrera grandes mudanças 200 anos mais tarde,
quando os monges se desentenderam com ricos-homens da região, pelos seus direitos
e rendas, e ainda outra vez, no século XVI, quando foi melhorada e ficou com o aspecto
que hoje tem». In Maria João Fialho Gouveia, Maria da Fonte, Topseller, 20/20 Editora,
2017, ISBN 978-989-886-955-5.
Cortesia de Topseller/20/20
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