sábado, 14 de abril de 2018

Maria da Fonte. Maria João F. Gouveia. «… lá repetia que aquela fora fundada no século XI, e que sofrera grandes mudanças 200 anos mais tarde, quando os monges se desentenderam com ricos-homens da região»

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O fogo de Maria
«(…) Ouve, Maria Angelina..., se me garantires que vais acatar as ordens da tua mãe e da tua irmã, eu falo com o arruaceiro do teu cunhado e dou-lhe um susto que o há-de trazer aquietado, já que o teu pai não tem peito para o enfrentar. E o que lhe vai dizer para o amedrontar? Isso são coisas de gente crescida. O Senhor também aos grandes corrige, sabes? Há que seguir os seus caminhos e advertir quem não os segue. Mas agora sossega essa cabecinha, volta para casa e deixa o resto comigo. Sim, senhor prior. A sua bênção. Deus te abençoe, Maria Angelina. Ele há-de ter uma vida de grandes feitos guardada para ti. Quando for maior e tiver forças, vou defender a minha irmã dos maus-tratos daquela peste. A julgar pelas ganas que te correm no sangue, hás-de defender todos quantos de ti precisarem! Vá, ala para o lar, que já se vai fazendo tarde. E lá partiu a pequena Maria Angelina, puxando para cima a saia que se lhe desprendia do pano torcido que a prendia à cinta, galgando os prados e subindo as ligeiras colinas dos dois quilómetros que separavam a igreja e o mosteiro de Fontarcada da sua exígua casa em pedra granítica, no lugar de Simães.
E como era bela a paisagem que rodeava aquele enclave viçoso no coração do Minho! Aninhada entre os vales desenhados pelos rios Ave e Cávado, a vila de Póvoa de Lanhoso, onde se inseria o antigo couto de Fontarcada e os seus limites, engalanava o distrito de Braga com a maravilha dos seus recantos. Planos ou em declive, extensos e férteis campos de lavoura e áreas florestadas cobriam quanto a vista alcançava ao redor, numa mescla de tons pastel e exuberâncias de cor. Mas se os olhos se regalavam com a oferenda do cenário povoense, não menos encantava a música dos sons da terra, presente na voz dos pássaros que lhe percorriam os céus e no suave canto das águas dos seus ribeiros, a que os sinos das igrejas se juntavam. Do alto do seu castelo centenário, parecia que o Minho inteiro se lhe desenrolava aos pés. Delimitado pelas terras fronteiriças de Amares, Fafe, Guimarães, Vieira do Minho e Braga, e pelas circundantes serras do Carvalho, do Gerês e da Cabreira, o território de Póvoa do Lanhoso, dada a sua privilegiada situação geográfica e estratégica, fora, desde eras já esquecidas, cobiçado pelos vários povos que o habitaram.
Rezava que ainda nem o Senhor Jesus Cristo nascera, já gentes lhe pisavam os chãos de que logo os romanos se apoderaram, trazendo consigo velhos e doutos saberes e a santa fé cristã. Por ali desfilaram ainda nobres e reis, fidalgas e rainhas, deixando marcas da sua presença. Fora o caso de Godinho Fafes, ou Falifaz, pai do alferes-mor do conde Henrique, que, em 1067, ali fez alevantar o templo e o mosteiro de Fontarcada, ou de São Salvador, orago da freguesia, cuja coutada se tornou pertença dos frades beneditinos. Também Dinis I, vendo a fortaleza em ruínas, a mandou restaurar, em nome da defesa do reino, concedendo foral ao concelho de Lanhoso em 1292. Essas histórias sabia-as Maria Angelina todas de cor, de tanto as ouvir contar ao padre da paróquia, tal como de cor conhecia todas as capelinhas dos pios arredores, desde a da sua povoação de Simães, em honra de S. Francisco, às de S. João, Santa Luzia e Santo António, em lugares cercanos. Eram, todas elas, palco anual das celebrações dos seus santinhos. Nenhuma das capelas, porém, se se comparava à da igreja matriz de Fontacarda, na sua nudez de paredes de pedra e de arcos românicos, cujo tímpano do portal ostentava o Cordeiro de Deus, que a pequena passava horas a contemplar.
Hei-de casar-me aqui!, dizia Maria Angelina ao padre João. Então, tens de aprender a sua história, retorquia ele. E a menina, ávida de lhe provar que seria digna de um dia, naquele santo chão, vir a receber a bênção de Deus Nosso Senhor para o seu matrimónio, lá repetia que aquela fora fundada no século XI, e que sofrera grandes mudanças 200 anos mais tarde, quando os monges se desentenderam com ricos-homens da região, pelos seus direitos e rendas, e ainda outra vez, no século XVI, quando foi melhorada e ficou com o aspecto que hoje tem». In Maria João Fialho Gouveia, Maria da Fonte, Topseller, 20/20 Editora, 2017, ISBN 978-989-886-955-5.

Cortesia de Topseller/20/20 E/JDACT