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A
rainha do povo
«(…) Entretanto, com o regresso
ao poder dos cabralistas, Maria vê-se obrigada a tomar refugio num outro lugar.
Na sua fuga, cruza-se de novo com o seu velho amor, afecto à causa de Miguel I,
que também ela passara a abraçar, e os dois pelejam sob uma mesma bandeira. Finda
a guerra, Túlio deixa a mulher legítima e estabelece-se com Maria Angelina em
Famalicão, onde recordam os seus feitos e vivem o Verão e o Outono das suas
vidas.
O fogo
de Maria
Maria!
Maria Angelina! Por onde andas, sua malfadada? Que mal te fiz, Senhor, para merecer
tamanha cruz?, lamentou-se, desconsolada, a pobre camponesa, lançando as mãos ao céu. Que tormenta! Não praguejes, Maria
Josefa! Valha-nos Deus! Vem confessar-te à missa da tarde. A tua filha desobedeceu-te
outra vez? É o pão nosso de cada dia, senhor padre. Eu que o diga, que agora tem
ficado em minha casa!, lamuriou-se Celeste Maria, irmã mais velha da catraia. Que
dizes tu, mulher?, investiu o companheiro de Celeste, ao escutar os queixumes. Aquela
peste voltou a escapulir-se-te? E à vossa mãe? Mal a apanhe, dou-lhe uma lição à
moda antiga! Calma, António, não será preciso tanto. Encaminhe-me a pequena à igreja
com um frete, que eu mesmo cuido de a ensinar, disse o clérigo. Ora, ora,
quando ela souber ao que vai, senhor cura, há-de embrenhar-se no bosque.
Pois então não lhe diga que a
espera um sermão meu. Ponha-lhe uma cesta no braço com um punhado de hortaliças
e mande-a entregar-ma. Ainda lhos perde pelo carreiro! E eu não o sei? O que
interessa é que ela venha ter comigo. Está certo, farei como me pede. Mas se o senhor
prior não der conta do recado, cá estarei eu para a emendar ao meu jeito. Vai ver
que não será necessário. A sua bênção, padre João. O Senhor esteja convosco. Vão
em paz, meus filhos. E tem paciência, António, que a gaiata há-de aprender. Só se
for por milagre! Sossegue, homem, sossegue. As palavras do Senhor corrigem mais
do que o cinto, despediu-se o sacerdote, tomando a vereda em direcção ao templo.
Era uma manhã de céus claros, a do
dia 1 Maio de 1835. Toda a Criação parecia explodir de cor e júbilo. Os largos campos
em redor estavam cobertos de papoilas e malmequeres, e Maria saltitava por entre
as flores e as altas ervas, como se ela própria fosse um despertar primaveril.
A candura dos seus 6 anos de idade fazia-a esquecer as ordens da mãe e da irmã,
os castigos do cunhado e as simples tarefas de que fora incumbida. Como habitualmente,
a bondosa Josefa confiara-lhe o afazer de dar de comer às galinhas e aos patos,
de que a filha tanto gostava, mas nem assim a petiza cumprira o acordo. Ao invés,
saíra ligeira e alegre pelos prados fora, aos pulos, fazendo saltar a saiinha velha
e remendada, a escorregar-lhe da cintura, e os longos cabelos escuros varrendo o
ar à sua passagem. Fora um melro, com o seu canto sedutor, que a desafiara a essa
corrida pela aldeia, ao levantar voo em direcção aos céus. Vai daí, a menina seguiu,
cá de baixo, o percurso do pássaro, até o perder de vista; já a sua casa se esbatia
num abraço verdejante.
Sem pressa de regressar, deixou-se
levar pelos apelos da fértil mãe Natureza, engalanada de flores e frutos e crias
de toda a espécie, naquela estação em que a vida brotava do ventre da Terra. Embevecida
com tais oferendas, colheu flores de várias espécies e matizes, acariciou os cordeirinhos
de um rebanho que pastava, desceu à ribeira a molhar as mãozinhas, que, em concha,
lhe levaram a água à boca. Depois deitou-se na erva, a mirar as formas das nuvens,
as copas das árvores, que uma brisa arrepiava levemente, e as aves que enchiam o
firmamento, até que, por fim, adormeceu. Foi a canícula do sol do meio-dia que a
despertou da modorra, e ela, logo se espreguiçando e esfregando os olhos, pôs-se
de pé num salto, e, tão leve e despreocupadamente como até ali, calcorreou o caminho
de casa dos pais, que ficava à beira do lar de Celeste Maria». In
Maria João Fialho Gouveia, Maria da Fonte, Topseller, 20/20 Editora, 2017, ISBN
978-989-886-955-5.
Cortesia de Topseller/20/20
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