Coimbra,
Julho de 1117
«(…) Só viu o conde Henrique uma vez.
Tinha três anos, levaram-no pela mão e na sua memória existe apenas um quarto escuro
e uma cama enorme, onde umas barbas falantes e acinzentadas escondem um homem velho
e deitado, magro e rouco. Lembra-se de uma mão fria e ossuda, de uma pele descolorida,
de um enjoativo cheiro a incenso e de uma sensação de dor no seu progenitor, que
soltava queixumes intermitentes. E lembra-se do sinistro rumor que ouviu: foi envenenado...
Depois, havia o eco das palavras,
muitas, que foram proferidas em francês, a língua do pai. Apesar de frágil, ainda
falou, dirigiu-se a ele. Meu filho, tendes de tomar conta das minhas terras, tendes
de as defender dos infiéis, como eu defendi sempre. Ao longo da sua vida, o meu
melhor amigo recordou ditos assim, que seu pai, o conde Henrique, lhe lançou quando
ele tinha três anos. Ditos sobre justiça, o futuro e a guerra, e umas palavras
finais incompreensíveis, balbuciadas aos soluços, sobre Jerusalém, Cristo, três
homens. Ditos que de pouco lhe valiam naquele dia em Coimbra, em frente daqueles
milhares de inimigos. Ali, tudo o que ele desejava era convocar a fama de
guerreiro do pai, para com ela aterrorizar os homens do califa. Estará na tenda
grande, ainda a dormir?, perguntara-me ele, na manhã anterior. Afonso Henriques
acreditava que Ali Yusuf, o almorávida de Marraquexe, regressara pela segunda vez
a Coimbra porque queria dizimar, uma vez mais, a família do rei de Leão. Queria
matar o neto de Afonso VI, a quem já matara o filho Sancho. Ainda me lembro dessa
manhã em Coimbra, tinha eu nove anos. O príncipe, um ano mais novo do que eu,
perguntou-me: Lourenço, se o meu pai fosse vivo, o que faria? Atacaria as tropas
infiéis, fazendo uma surtida? Ou aguentaria o cerco?
Enquanto um solitário arqueiro ciranda
no alto do castelo, para cá e para lá, o menino perscruta melhor o Mondego, que
parece escondido no nevoeiro, como se as suas águas estivessem envergonhadas e pedissem
desculpa por ajudar os mouros. Nas margens, a duzentos passos do acampamento,
há quem nade, vê cabecinhas à superfície e corpos inteiros seminus, a caminharem
para o rio. Devem ir lavar-se logo pela manhã. Os árabes lavam-se muito, foi o que
lhe explicou a menina moura, a mais nova, Zaida, que é muito mais simpática do que
a irmã mais velha, Fátima, que gosta de andar à bulha; isso já deu para perceber
nestes vinte e poucos dias que conviveu com elas em Coimbra. Elas estão na cidade
desde o ano anterior, quando ficaram prisioneiras dos cristãos, depois do
primeiro cerco de Ali Yusuf.
Diz-se que foi Taxfin, marido da mãe
delas, Zulmira, e governador de Córdova, quem convenceu o califa a regressar a Coimbra
para as resgatar. Ontem à tarde, Fátima ameaçou-o, enquanto brincavam no pátio da
alcáçova. Ele jurou que os cristãos iam matar os infiéis todos e ela cresceu
para ele, enfurecida, berrando: se não vos calais, levais um murro! Ele desatou
a correr, fugindo dela e repetindo bem alto o que dissera. Mas até ele, com oito
anos, sabe que Coimbra está em perigo. Espanta-o que os infiéis não ataquem a cidade
com mais violência. Se avançassem ganhavam, foi o que ouviu dizer. Terá sido meu
pai, Egas Moniz, ou o meu tio Ermígio, quem assim falou? O Afonso Henriques e eu,
bem como os meus irmãos Afonso e Soeiro, fomos educados pelos dois, vivemos com
eles em Lamego, e foram eles que nos levaram para Coimbra. Se tivessem sabido
daquele cerco, não teriam certamente ido. Tratava-se apenas de uma visita estival
de cortesia à mãe do meu melhor amigo. Ou melhor, à condessa dona Teresa». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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