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Rainha
que o povo amou. Maria Pia de Sabóia (1847-1911)
«Quando
em 1910 a monarquia portuguesa foi extinta, havia em Portugal duas rainhas: dona
Amélia e dona Maria Pia. E, contudo, a memória colectiva do episódio da partida
para o exílio apenas reteve a figura de deona Amélia. Ignora-se quem foi dona Maria
Pia, quando viveu, qual a sua personalidade. Surge a surpresa quando se afirma
que a 5 de Outubro saíram de Portugal duas rainhas, reacção recorrente dos meus
alunos, como é também em outros círculos alheados da história. Já em ambientes com
outro nível de conhecimentos, à questão sobre o que sabem de dona Maria Pia,
ouve-se caracterizá-la com algumas destas fórmulas: frívola, dissipadora,
vaidosa, geniosa, detestando o marido, ciumenta da nora, desequilibrada, uma tonta.
Repetem-se as célebres frases que se lhe atribuem e que, na realidade, são todas
apócrifas: no me piace Luigi, gravado na vidraça com os brilhantes dos anéis;
se eu fosse o rei mandava-o fuzilar, dirigindo-se a Saldanha em 1870; quem
quer rainhas paga-as, quando a acusavam de gastar demasiado, etc.. Outros,
ainda, referem-se a publicações recentes, de nível light, que fazem dela
uma mulher adúltera sexualmente insaciável. No seu país de origem, a Itália,
Maria Pia foi esquecida. Os estudos sobre os Saboias do século XIX ignoram-na quase
totalmente.
Como explicar este apagamento de
Maria Pia da memória colectiva portuguesa se em 1910, ao partir para o exílio,
vivia em Portugal há quarenta e oito anos enquanto dona Amélia apenas há
vinte e quatro? Como explicá-lo, sabendo nós que foi uma rainha amada pelo
povo; que nunca foi vaiada ou desconsiderada em público, ao contrário de Carlos
I e de dona Amélia; a única, no dizer de muitos, que deixava saudades? Como explicar
também a imagem tão negativa que se lhe colou e que contraria flagrantemente a opinião
maioritária da época? Como explicar, ainda, que nunca um historiador tenha
escrito uma biografia desta rainha que tanto fascínio suscitou?
A imagem que se veicula actualmente
da rainha Maria Pia é quase antagónica daquela que a sua época traçou. Ao tempo,
a maioria dos portugueses considerava-a caritativa, generosa, afável, mãe e educadora
severa e exemplar. Celebravam-lhe a elegância do porte, a coragem manifesta nos
momentos decisivos, o sentido da majestade, o apoio sempre prestado ao marido, à
dinastia e ao país, a simpatia e gentileza para com grandes e pequenos. Mas sabiam-na
também gastadora em demasia e muitos diziam-na infeliz no casamento. Os adversários
políticos atacaram os seus gastos, propalaram as suas excentricidades, ou caprichos,
consideravam-na autoritária. A propaganda republicana e a dos monárquicos afastados
do poder fizeram correr muitas difamações e boatos absurdos sobre todas as
pessoas da família real. Nos finais da monarquia existiam na corte duas facções
que se confrontavam, a de Carlos I e a de dona Amélia, veiculando cada uma delas
notícias contraditórias. E foram-se construindo imagens incompatíveis da
personalidade da rainha Maria Pia.
Acrescento outros factores que contribuíram,
após o fim da monarquia, para o desabono e para o apagamento de Maria Pia: os monárquicos
portugueses que enaltecem a família real centram-se, quanto às figuras
femininas, em dona Amélia, romantizada por ter sido a última rainha e pela sucessão
de tragédias que sofreu, deixando dona Maria Pia na sombra, embora esta tenha vivido
também parte desses dramas. Para traçar o panegírico e ressaltar as qualidades de
dona Amélia, os seus biógrafos franceses (que não são historiadores) não se coibiram
em denegrir a sogra, com quem fizeram o confronto. A uma Amélia despretensiosa,
corresponde uma Maria Pia soberba e vaidosa; a uma mente equilibrada, uma desequilibrada
quando não mesmo alienada; a uma mulher de gostos simples e moderados, uma perdulária;
a uma esposa exemplar, uma ninfomaníaca adúltera; a uma Amélia socialmente activa
com obra importante e eficaz, uma Maria Pia filantrópica de espavento e sem
real utilidade. Estas biografias assentam, pelo menos em parte, em afirmações
orais e escritas de dona Amélia e da sua família. Ora, Amélia de Orleães viveu
muitos anos após a implantação da República e falou e fez escrever o que quis, não
se inibindo de traçar um retrato pouco lisonjeiro do marido, como Rui Ramos já
salientou. E da sogra, acrescento eu.
Os historiadores portugueses,
questionando-se pouco ou nada sobre a personalidade de Maria Pia, têm repetido certos
comentários da época e apreciações posteriores, mas é óbvio o desinteresse ou condescendência
que sentem por alguém que consideram de insignificante importância. Por vezes parecem
partilhar do estereótipo da mulher bela e elegante que forçosamente é fútil. Porque
é assim que Maria Pia é apresentada: uma mulher frívola, perdulária, pouco
inteligente e instruída. E que por isso não era levada a sério nem pelos políticos
e cortesãos, nem pelo marido, pelo filho mais velho ou pela sua família de origem.
Afigura-se que, inconscientemente, certos autores assimilaram o que o século XIX
pensava das capacidades cerebrais das mulheres. É também comum dizerem que teve
episódios de loucura, ou, pelo menos, que era desequilibrada, e que enlouqueceu
depois do regicídio. Na verdade, não encontrei na documentação primária o mais
leve indício de desequilíbrio mental. Outra imagem forte desta rainha, que perdurou
e se reproduz, são os seus gastos excessivos, o que, ressalvando alguns exageros,
corresponde à verdade. Por fim, uma questão recentemente tratada.
Segundo Luís Espinha Silveira, dona
Maria Pia teve como amante, nos finais da década de 1880, Tomás Sousa Rosa. A situação
terá sido de tal forma grave que Luís I ponderou a separação e mesmo a sua própria
abdicação. Não me parece que se possa ser tão categórico a este respeito. Debruçar-nos-emos
sobre o assunto, pois a minha leitura é bastante diferente. Mas deve salientar-se
que Espinha Silveira foi o único historiador actual que procurou perceber a personalidade
de dona Maria Pia». In Maria Antónia Lopes, Rainha que o povo amou, Dona Maria Pia de Saboia, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-718-2.
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