domingo, 15 de abril de 2018

Confissões de uma Liberal. Maria F. Mónica. «A convicção de que os inocentes nada têm a temer com a introdução deste tipo de documentos é falsa»

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Quantos liberais há no meu país?
«Em geral, não sou desconfiada. Contudo, no que diz respeito ao Estado português, tenho razões para alterar a minha atitude, sobretudo quando estão em causa questões ligadas às liberdades, como sucede com o anunciado, Cartão do Cidadão, que irá juntar, num só, dados anteriormente espalhados por cinco documentos. Os argumentos apresentados pelo poder, representado numa sessão solene pelo Primeiro-Ministro e por quatro ministros, foram variados: o cartão facilitaria a vida dos eleitores (acabaria com a necessidade de recenseamento), dos doentes (que se dirigem aos hospitais sem saber quem são), dos reformados (que ali veriam incluído o respectivo número de pensionista), dos contribuintes (que não teriam de decorar o horrendo número) e dos indivíduos em geral (que ali veriam registado um eventual passado cadastral).
O cartão teria ainda a vantagem, declarou o ministro da Administração Interna, António Costa, de ser de difícil falsificação, uma vez que estava montado para responder às novas exigências da União Europeia, permitindo ao cidadão comunicar ao Estado, por via electrónica, a mudança de residência. A mistura, entre grandes projectos e minudências práticas, pôs-me de pé atrás. O PM Sócrates declarou que o cartão, apesar de concentrar num chip único informação diversa, de tal forma estava desenhado que os dados ficariam guardados em gavetas separadas, sendo a zona central para os certificados digitais e as outras, uma para as Finanças, outra para a Segurança Social e a última para a Justiça, ou seja, que o perigo de cruzamento de dados se não colocava. Já lá vamos. Porque há mais. Os jornais informavam que várias empresas privadas, entre as quais a Microsoft, haviam colaborado, a título gratuito, no esquema: mais uma razão para dele desconfiarmos. A certa altura, o PM dizia que A partir do lançamento do cartão do cidadão há uma grande gama de projectos que poderão simplificar e modernizar a relação da administração pública com os cidadãos, após o que significativamente acrescentava: tenho a certeza de que passará ir haver uma concorrência entre os serviços da administração pública para a inclusão de novos dados no cartão. Até onde irá a fome do Estado em registar as nossas vidas num quadradinho?
Ao mesmo que se anunciava que o documento iria ser experimentalmente usado nos Açores, o cidadão José Sócrates, que, tanto quanto sei, não nasceu nas Ilhas, deitava fora os seus cinco cartões, enquanto um carteiro lhe entregava um reluzente documento único. Na minha opinião, o Bilhete de Identidade é uma demonstração de falta de confiança entre o governo e os governados. Imaginem agora o pânico de que fui assaltada ao ouvir falar de um B.I. em potência quintuplicada. Num país onde o Procurador Geral da República não é capaz de guardar as escutas telefónicas nem outros dados sigilosos, como se viu pelo caso do envelope 9, que garantias tenho de que, pela calada da noite, o poder não cruze os dados contidos no meu chip? E não apenas o Estado: toda a casta de gente, boa e má, poderá obter dados sobre a minha vida privada. Alguém duvida que, num mundo onde a pirataria electrónica se tornou numa arte ao alcance dos adolescentes, haverá indivíduos dispostos a abrir as gavetas que o PM Sócrates nos diz estarem seladas?
A convicção de que os inocentes nada têm a temer com a introdução deste tipo de documentos é falsa. Foi muitas vezes contra inocentes que os Estados usaram a informação que possuíam. Neste capítulo, o que devemos fazer é prever o cenário mais tenebroso. Esta posição pode parecer estranha vinda de alguém que acaba de publicar uma autobiografia tida como despudorada, mas, no caso do livro, fui eu e não o poder quem escolheu o que queria revelar. Os portugueses ouviram o anúncio do Cartão Único com a sua habitual equanimidade. Nem sequer estranharam que uma matéria da competência exclusiva da Assembleia da República, cuja Comissão para a Defesa dos Direitos, Liberdades e Garantias terá de analisá-la, fosse anunciada de forma expedita. Pelo meu lado, já comprei um óculo, a fim de observar as cabecinhas que, no hemiciclo, se erguerão para derrotar o Cartão Único. Suspeito que se podem contar pelos dedos de uma mão». In Maria Filomena Mónica, Confissões de uma Liberal, Quasi Edições, 2007, ISBN 978-989-552-274-3.

Cortesia de QuasiE/JDACT