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Rainha
que o povo amou. Maria Pia de Sabóia (1847-1911)
«(…) Neste livro tento
compreender uma vida e um carácter, mas, como obra histórica que é, não pode
deixar correr a imaginação sem o suporte documental. E este nem sempre existe.
No caso vertente, a questão agrava-se com a sonegação de documentos (de certeza
importantes) por quem não tinha qualquer legitimidade para o fazer, uma vez que
se trata de um conjunto documental pertencente a uma instituição pública.
Refiro-me ao facto de não ter sido autorizada a consultar a documentação
existente no Palácio Nacional da Ajuda (não confundir com a Biblioteca da
Ajuda), onde, na verdade, tais documentos não deveriam estar por se tratar de
um museu e não de um arquivo ou biblioteca. Não iniciei esta investigação com o
propósito de ser original à força, revendo a imagem de Maria Pia de Saboia em
sentido positivo ou negativo. E, contudo, à medida que a investigação decorria,
apercebi-me cada vez mais nitidamente de que esta mulher tem sido mal
interpretada e que se trata de uma pessoa muito mais rica e interessante do que
se tem afirmado. A minha posição é incómoda. Não há dúvida de que, em nome do
rigor histórico, a personalidade tem de ser revista num sentido positivo, tanto
no que se refere às suas qualidades humanas, como às suas capacidades
políticas, mas este livro não é um panegírico de Maria Pia, nem, evidentemente,
a sua detracção ou a de outrem.
Como disse, não existe nenhuma
biografia da rainha Maria Pia assente em investigação, embora desde o seu tempo
até à actualidade (2009) muitos autores se lhe tenham referido para traçar as vidas
dos monarcas Luís I, Carlos I e da rainha dona Amélia ou para analisar a época.
Tais escritos possuem valor muito distinto, indo da mera recolha acrítica de
notícias da imprensa, boatos e lendas, ou da compilação de informações
historiográficas dispersas, até à verdadeira investigação histórica que, muito
recentemente, recorreu a documentação privada produzida pela própria rainha. Uma
obra histórica, comecemos por esclarecer, assenta sempre, pelo menos em parte,
em fontes, o que significa documentos da época, que podem ser de natureza muito
diversificada. Quando assim não sucede, quando se trabalha a partir de estudos,
estamos perante um trabalho de síntese ou de um ensaio, mas não de um texto
historiográfico. Além do recurso a fontes, é necessário dominar a metodologia
histórica da investigação e da exposição. Por isso, a história não pode ser
confundida com relatos publicados por pessoas bem intencionadas mas sem o
domínio dos saberes, das técnicas e da deontologia inerentes a esta ciência, Um
pequeno livro publicado em 2007 com o título Maria Pia: Rainha e mulher,
de autoria de José Manuel Pavão e João Cerqueira, é um exemplo de uma síntese.
Tem a valia de reunir, pela primeira vez, informação que se encontrava dispersa,
mas não acrescenta saber porque apenas compilou o que já estava escrito e era
conhecido. Contudo, apesar das evidentes limitações e equívocos de que enferma,
é uma síntese honesta. Já a passagem que as autoras de Amantes dos reis de
Portugal dedicam a Maria Pia é dos exemplos mais flagrantes de leviandade
de quem escreve sobre o que não estudou e sobre o que nunca reflectiu.
Desculpável em tantos que, sem formação, publicam e alcançam êxitos fáceis, é
inadmissível a quem se apresenta como historiador.
Autores mais antigos, alguns seus
contemporâneos, escreveram sobre dona Maria Pia. Todos estes autores apresentam
uma imagem muito favorável de dona Maria Pia. Pouco lisonjeiras são as
apreciações da condessa de Rio Maior (Isabel Sousa Botelho), marquês de
Fronteira (José Trazimundo Mascarenhas Barreto), Júlio Vilhena (1916), Raul
Brandão (1998 e1925) e Aires Sá (1928). César Silva (1922), que demonstra
admiração por Maria Pia, considera que na intimidade, porém, acusava um
desequilíbrio por vezes desastroso. Era uma histérica. Rocha Martins (1926
e 1931) romanceia, deixa correr sem freios a imaginação, além de apresentar
erros factuais e interpretações muito datadas. Define dona Maria Pia como boneca
caprichosa, orgulhosa, ardente, brava, sem medo, desprezando a vida e
considerando a sua qualidade de rainha acima de todas as vulgaridades, era
sublime e bondosa, majestática e humilde, doce e irritável, uma histeria
desenvolvida num corpo nado para os nervosismos e que as constantes
contrariedades tinham levado ao excesso, ao tormento. Segundo o mesmo
autor, depois do regicídio, transformou-se em uma tontinha a regar as flores
dos seus tapetes. Raul Brandão, cujo diário publicado com o título de Memórias
é muito utilizado, está na origem de inúmeras fantasias sobre Maria Pia,
repetidas ad nauseam. Brandão registava toda a maledicência que corria
em Lisboa, sem lhe aplicar qualquer crivo crítico, publicando os boatos mais
inverosímeis. Tem também equívocos, só possíveis se o texto foi escrito ou acrescentado
muito depois das datas que refere. Afirma, por exemplo, que no dia 11 de Maio
de 1903 se discutiu na Câmara dos Pares a viagem da rainha dona Amélia, sendo
acusada de ter inventado esse pretexto para não receber Émile Loubet,
presidente da França. Ora, quem visitou Portugal em 1903 durante a ausência de dona
Amélia foi o rei Eduardo VII. Loubet esteve em Lisboa em 1905 e foi recebido
por dona Amélia e quem se encontrava no estrangeiro nesta altura era a rainha
Maria Pia. No segundo volume, Raul Brandão mudou, humanizou-se. O tom é mais
reflectido e quando relata boatos faz algumas apreciações sobre a sua
credibilidade». In Maria Antónia Lopes, Rainha que o povo amou, Dona Maria Pia de
Saboia, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-718-2.
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