O Algarismo e o Número
«(…) Quando o rei Fernando cumpriu dezoito anos,
a rainha Berenguela considerou chegado o momento de lhe procurar esposa. Numa
assembleia de conselheiros celebrada no palácio real de Burgos, a rainha
anunciou os seus planos. O meu filho, o soberano de Castela, já é um homem. E
todo o homem precisa de uma esposa a seu lado; assim o diz a lei de Deus. Se
esse homem, além do mais, é um rei, a sua obrigação é procurar descendência
para que a sua linhagem se perpetue e proporcionar ao reino um herdeiro. Vós,
nobres ricos-homens de Castela, jurastes fidelidade ao meu filho Fernando e
lealdade à coroa que encarna. Chegou a altura de que o rei de Castela procure
uma esposa com que ter descendência e proporcionar a Castela o seu ansiado
sucessor. Os ricos-homens congregados na cúria real de Burgos assistiam calados
e atentos à prédica de dona Berenguela; de vez em quando, um ou outro concordava
com ligeiros acenos de cabeça com as palavras da rainha-mãe. Já haveis pensado
em alguma candidata para futura rainha de Castela, Senhora?, perguntou Maurício,
o bispo de Burgos.
Creio ter encontrado a candidata ideal, Sua
majestade deve casar com uma princesa de sangue real, mas não pode ter relações
de parentesco com ela, pois, e eu sei muito bem do que falo, um casamento desse
tipo poderia ser anulado pelo papa. A candidata que elegi é a princesa Beatriz
da Suávia, a filha do imperador Filipe. O seu primo e custódio, o actual imperador
Frederico, está de acordo com o casamento. Haverá que ir buscar a noiva, supôs o
bispo Maurício. Com efeito, senhor bispo. E para tal, pensei no homem adequado.
De quem se trata? De vós, bispo Maurício. Vós haveis estudado em França, viajado
pela França e pela Alemanha, e conheceis o imperador. Sois um homem equâmine e
um ministro de Deus. Além disso, como bispo de Burgos, corresponder-vos-á o
privilégio de celebrar o casamento. Não vos parece, Senhores? Os nobres
e cidadãos assistentes à cúria concordaram de imediato. Mas, Senhora, eu...,
bem, farei o que ordenais. Nesse caso, preparai a vossa viagem. Quando passar
este cru Inverno, partireis para a Alemanha. Entretanto, escreveremos ao
imperador Frederico para que disponha o necessário e guarde a prima com a
diligência que o tutor da futura rainha de Espanha o deve fazer.
Henrique de Ruão
ingressou na escola catedralícia de Chartres pouco tempo antes de cumprir os
nove anos. Os bispos de Chartres haviam conseguido que a sua escola tivesse
tanto prestígio como o que tinham alcançado as universidades que já funcionavam
em algumas cidades europeias. Acorriam à escola de Chartres estudantes ávidos
de conhecer disciplinas que só ali dispunham dos mestres adequados. Na escola
estavam orgulhosos dos seus mestres, sobretudo de Bernardo, um dos fundadores,
que tinha criado uma frase que os alunos aprendiam de memória no primeiro dia
da sua aprendizagem: nós, os homens modernos, somos apenas anões sobre os
ombros de gigantes. Esta frase resumia melhor, que nenhuma outra, o espírito
docente da escola. Significava que, para compreender o homem e o mundo, era
necessário apoiar-se nos ensinamentos dos grandes sábios, sobretudo dos antigos.
E entre eles, o mais reconhecido e estudado era o filósofo grego Platão, e o
texto oficial da escola catedralícia era a sua obra Timeo. Nesse livro, o
filósofo ateniense sustentava que o mundo fora criado a partir da geometria e
do poder do número, e não pela luz. Os alunos de Chartres aprendiam que a
última realidade, e portanto a mais perfeita, da criação eram os números
matemáticos e, em consequência, as formas geométricas que estes sugeriam; o
homem apenas via as sombras da verdadeira realidade. Toda a natureza derivava
de combinações numéricas e tudo era, em suma, geometria». In
José Luís Corral, O Número de Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas,
Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT