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Camões
e a Língua Portuguesa
«(…) Essa cultura
não o cegou a ponto de preferir o latim ao português como veículo de expressão poética,
mas permitiu-lhe, seguindo aliás o conselho dos gramáticos seus contemporâneos,
uma fecunda renovação linguística e estilística. Os dados reunidos por Carlos
Eugénio Correia Silva (Paço d’Arcos), no Ensaio sobre os latinismos dos Lusíadas,
são desse facto uma prova segura, enquanto não dispomos de estudo mais
actualizado (publicado em 1931 pela
Imprensa da U. de Coimbra e reeditado em 1972, pela Imprensa Nacional Casa da
Moeda). A juntar à matriz latina, eram-lhe fontes de generosa abundância os códigos
retórico-estilísticos próprios do petrarquismo e do neoplatonismo, a Bíblia, os
poetas antigos e contemporâneos, com que transformou e revitalizou o vocabulário
poético à beira da exaustão nas páginas do Cancioneiro Geral, de Garcia de
Resende.
Depois, fruto do exercício dos seus
dons de observação, tão dentro do espírito português do Renascimento, o verbo poético
camoniano enriquece-se com as linguagens encontradas no seu dia a dia de soldado
da terra e do mar. A sua paleta estilística, que a poesia então era pintura!, apreende
matizes novos pelo uso da terminologia náutica, da nomenclatura da fauna e da flora,
da astronomia, dos fenómenos atmosféricos e marítimos, das artes bélicas, do rude
linguajar de marinheiros, chatins e aventureiros, e até da interferência do português
reinol com os idiomas alienígenas.
Foi porque Camões soube caldear
os elementos de uma sólida cultura humanística com os ensinamentos de uma longa
experiência, que a sua obra, fixando uma das mais altas criações do espírito europeu
de Quinhentos, não perdeu as marcas de humanidade dramaticamente vivida. Por isso
ela venceu o tempo e a sua influência, longe de ficar confinada ao nível de um estilo
literário ou de um paradigma estético, específicos de uma época, perdurou como
força de constante renovação a outros níveis da criação artística e da actividade
linguística portuguesa subsequente.
Recolhendo a herança do saber linguístico
anterior, e é curioso ver como conciliou uma invulgar criatividade idiomática com
o consciente aproveitamento do arcaísmo com intenção estética, dos grandes movimentos
culturais da sua época e da sua experiência ultramarina, o idiolecto camoniano oferece,
no plano sincrónico, um modelo completo da realização da língua portuguesa na segunda
metade de Quinhentos». In Aníbal Pinto Castro, Camões e a Língua
Portuguesa, Quatro Orações Camonianas, Academia Portuguesa da História, Lisboa,
1980.
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