Camões
e a Língua Portuguesa
«(…) Dados, porém, o grau de capacidade
expressiva que atingira e a qualidade estética do discurso que transmitia, a poesia
camoniana há-de servir, no plano diacrónico, não apenas de charneira entre dois
momentos fundamentais da evolução do português, mas imprimir um decisivo impulso
a essa evolução e oferecer-lhe um padrão ou norma seguros para a realização da língua,
tanto escrita como falada, mantendo vivo um ideal de correcção e venustez, e constituindo
uma força centrípeta contra os factores de desgaste que permanentemente transformam
os sistemas linguísticos.
A consciência desta importância e
deste papel da poesia de Camões no enriquecimento e na evolução da língua
portuguesa não tardou, aliás, a manifestar-se de maneira bem explícita, se bem que,
por vezes, não isenta de polémica. O testemunho de Manuel Severim Faria é desse
facto uma prova, entre muitas, bem concludente. Ao tratar nos Discursos vários
políticos, publicados pela primeira vez em 1624, das partes que ha de ter
a epopeia, e de como Luís de Camões as guardava nos seus Lusíadas, afirmava,
com efeito, o erudito Chantre de Évora:
com esta sua obra ficou enrequecida
grandemente a lingoa Portuguesa; porque lhe deu muitos termos novos, e palavras
bem achadas que depois ficarão perfeitamente introduzidas. Posto que nesta parte
não deixárão alguns escrupulosos de o condenar, julgando-lhe por defeito as palavras
alatinadas que usou no seu poema. Porem desta censura o absolverà com facilidade
quem tiver noticia das leis da poesia, e da licença, que he concedida aos Poetas
para fingir, e dirivar novas palavras, porque tem obrigação de falar ornadamente,
não podem deixar de enriquecer seus versos com palavras, ou densadas, ou novas,
ou transferidas, que são as condições, que ensinam os Retoricos para a oração ficar
com magestade, e fora do estilo humilde e vulgar.
E ao refutar as opiniões assim
expressas, o próprio Manuel Pires Almeida limitava-se a condenar o uso dos
latinismos sem, no entanto, se atrever a pôr em causa o enriquecimento que os
Lusíadas haviam trazido à língua portuguesa.
A fortuna de Camões
durante a época barroca (infelizmente por estudar?), devida a causas múltiplas de
ordem estética e até política, prolonga-se, apesar das vesgas invectivas
críticas de Verney (que de poesia percebia muito pouco), pelo período neoclássico,
para atingir, mau grado o azedume do padre José Agostinho Macedo, os tempos
românticos, sob os auspícios de Garrett.
O resultado desta presença contínua
e continuada não se reduziu, porém, a uma influência literária apenas situada no
plano da intertextualidade. Gramáticos, críticos, teorizadores de Poética e de Retórica,
aproveitaram a poesia camoniana como linfa cristalina onde todos, em todas as circunstâncias,
e por conseguinte, em todos os géneros, na prosa como no verso, podiam beber, com
a beleza estilística dos tropos e das figuras, a pureza e correcção do falar e
do escrever, quando a observância da norma no uso do vernáculo não era um estigma.
Apontarei apenas um exemplo.
É o Antídoto da Língua Portuguesa,
de José Macedo, publicado em Amesterdão, segundo reza o frontispício, sob o pseudónimo
de António de Mello da Fonseca, sem data, mas com uma dedicatória ao
monarca João V firmada em 1 de Janeiro de 1710». In Aníbal Pinto Castro, Camões e
a Língua Portuguesa, Quatro Orações Camonianas, Academia Portuguesa da
História, Lisboa, 1980.
Cortesia de APHistória/JDACT