Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) O
pequeno Pietro ficou corado, envergonhado das suas desatinadas ilusões. No
entanto, colocou-se sobre um banco e começou a sua tarefa com todo o empenho.
Os sinos da igreja haviam tocado duas vezes quando terminou de limpar o último
pincel, antes que desse por encerrado o seu trabalho, Francesco Monterga
aproximou-se do seu aprendiz e perguntou onde estava o lápis que lhe havia dado
na noite anterior. Com as mãos molhadas e os dedos brancos e enrugados, Pietro
remexeu na bolsa que estava presa na cintura e de lá tirou o lápis e o ergueu
em frente aos seus olhos. Muito bem, sorriu o mestre, é hora de começar a
usá-lo. Pietro não se atreveu a alegrar-se, mas, quando viu que Francesco
Monterga trazia um papel e lhe oferecia, o seu coração bateu com força. Então o
mestre apontou para a imensa estante que se perdia na penumbra do tecto e lhe
disse que organizasse tudo o que se amontoava nas infinitas prateleiras, que
limpasse o que estivesse sujo e que, depois, com o lápis e o papel, fizesse um
inventário de todas as coisas. E, antes de voltar para o cavalete, disse que
lhe perguntasse sempre que não soubesse o nome de algum objecto. Sem que Pietro
imaginasse, aquele era o primeiro degrau da íngreme escada da formação de um
pintor. Assim havia escrito o grande Cosimo da Verona, que tinha sido o mestre
de Francesco Monterga. No seu Tratado de pintura, dizia: a primeira coisa para quem aspira a ser pintor, deve conhecer as ferramentas
com que vai trabalhar. Antes de fazer o primeiro esboço, antes de traçar a
primeira linha sobre um papel,
uma tábua ou uma tela, deverá familiarizar-se com cada instrumento, como se
fosse parte do seu corpo; o lápis e o pincel deverão responder à sua vontade da
mesma maneira como o fazem os seus dedos. (...) Por outro lado, a ordem é a
melhor amiga do ócio. Se, vencido pela preguiça, deixa sujos os pincéis, será
muito maior o tempo que gastará para retirar as crostas secas da tinta velha.
(...) O melhor e o mais caro dos pincéis de nada serve se não está em
condições, pois arruinaria tanto a tinta quanto a tábua. (...) Terá que saber
qual é a ferramenta mais adequada para cada fim. Antes de usar um carvão, deve
comprovar a sua dureza: um carvão muito duro pode arruinar o papel, e um muito
tenro não deixará marca numa tábua; um pincel de pelos rígidos arrastará o
material que ainda não estava completamente seco, e outro muito flexível não
fixará as capas grossas de tinta. Por isso, antes de iniciar-se no desenho e na
pintura, deve poder reconhecer cada uma das ferramentas.
Já havia caído a noite quando
Pietro, cochilando sobre o papel e fazendo esforços sobre-humanos para manter
os olhos abertos, terminou de fazer a lista com cada um dos objectos da
estante. Francesco Monterga olhou para as prateleiras e percebeu que nunca as
tinha visto tão arrumadas. Frascos, pincéis e ferramentas estavam reluzindo e
dispostos com uma ordem metódica e escrupulosa. Quando o mestre baixou o olhar,
viu o pequeno Pietro adormecido sobre as suas anotações. Francesco Monterga
felicitou-se pelo seu novo investimento. Se tudo se ajustasse, como na previsão
do abade, em alguns anos iria colher os frutos da trabalhosa tarefa de ensinar.
Sempre seguindo os passos do seu próprio mestre, Cosimo da Verona, Francesco
Monterga fixava-se nos preceitos de que o ensino de um aprendiz se completa no
décimo terceiro ano. Em termos ideais,
a educação de um aspirante devia começar exactamente aos cinco anos.
Primeiramente,
é necessário um ano para estudar o desenho elementar que depois vai ser
transposto aos quadros. Mais tarde, junto com um mestre no ateliê, para
colocar-se a par de todas as ramificações de nossa arte, começar por moer as
cores, cozinhar as colas, amassar os gessos, ganhar prática no preparo dos
quadros, realçando-os, polindo-os, dourar e fazer bem o granado, serão
necessários seis anos. Depois, para estudar as cores, fixá-las com mordentes,
fazer roupagens douradas e iniciar-se no trabalho em murais, são necessários
mais seis anos, desenhando sempre, não deixando o desenho nem em feriados, nem
em dia de trabalho. (...) Há muitas pessoas que afirmam que aprenderam a arte
sem mestres. Não acredites. Este livro, por exemplo, se tu o estudasses dia e
noite sem praticar com algum mestre, não chegarias a lugar nenhum, nunca
estarias entre os grandes pintores. Durante os primeiros
tempos, o pequeno Pietro resignou-se à sua nova existência, que consistia em limpar,
organizar e classificar. Em alguns momentos, sentia falta de sua vida no
orfanato; sem dúvida, o alegre padre Verani era uma boa recordação em
comparação com seu novo tutor, um homem áspero, severo e mal-humorado». In Federico Andahazi, O
Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.
Cortesia de L&PM Pocket/JDACT