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«(…) Carlos Magno, representando
o mundo carolíngio, surge na sua análise como o inevitável contraponto
histórico de Maomé, signo da expansão islâmica.
Novas leituras: cultura,
psicologia, mentalidade, vida quotidiana
Se o diálogo mais
intenso com a economia permitiu o desenvolvimento de novas análises e organizações
cronológicas da passagem da Antiguidade Romana à Medievalidade Europeia, o século
XX também trouxe uma atenção especial a questões direccionadas para a percepção
da psicologia do homem, o estudo das mentalidades, o exame da vida quotidiana.
O mesmo movimento de expansão que permitiria que se afirmasse uma
psico-história, uma história das mentalidades, uma história do quotidiano, e
tantos novos domínios, também permitiu que novas dimensões fossem priorizadas
pelos historiadores deste período que permeia a passagem da Antiguidade à Idade
Média.
Em parte, a
multiplicação de novos pontos de vista sobre a passagem é produto tanto de uma
diversificação temática, mais atenta às diversas dimensões da vida humana e
social, como de novas alternativas de fontes e novos concursos
interdisciplinares. Tanto a leitura das continuidades como das rupturas
envolvidas na passagem do mundo antigo à medievalidade adquirem outras cores
com a diversificação de novas possibilidades de fontes. É assim que a ideia de queda
é mais uma vez retomada por Brian-Ward Perkins, um arqueólogo que recria através
de diversificadas fontes da cultura material um contundente quadro da dura e
violenta realidade quotidiana dos que vivenciaram a passagem do mundo antigo
para os novos tempos. Ao enfatizar a ruptura, a obra se confronta, pode-se
dizer que corajosamente, com os sectores historiográficos que enfatizam as
continuidades e que, mesmo em alguns casos, minimizam os aspectos que remetem
às violências envolvidas no processo de adaptação das populações do Império
Romano ao domínio germânico. Rigorosamente falando, podem ser percebidos
reflexos das discussões contemporâneas em torno da unidade europeia no
confronto da obra de Brain-Ward Perkins contra todo um amplo sector de estudos contemporâneos
que enfatizam os aspectos multiculturalistas, adaptativos e mesmo pacíficos desta
movimentação de populações que rompe as fronteiras do Império. A ênfase nas continuidades,
minimizando as violências do processo, viria obviamente ao encontro da posição da
União Europeia nos dias de hoje (discurso em favor de uma unidade e identidade
europeias, sem depreciar circuitos culturais relacionados à ancestralidade das
diversas realidades nacionais europeias). Mas esta é certamente uma discussão
que nos levaria muito longe.
De todo o modo, o facto
é que, com a emergência de uma atenção historiográfica voltada para as mais
diversas dimensões da vida humana, permite-se cada vez mais que sejam vistos
como períodos dotados de suas próprias singularidades tanto o período do Baixo
Império Romano, examinado não mais como um período de decadência, como o
período que se situa entre a extinção política do Império Romano do Ocidente e
a expansão islâmica no século VIII. As contribuições são inúmeras, e vão desde
as leituras atentas às práticas culturais elaboradas por André Chastagnol, um
autor que, além de uma leitura mais totalizante como a desenvolvida em O Senado Romano à Época Imperial,
procurou examinar questões culturais mais específicas como a das festas
imperiais, até às análises atentas às representações culturais e às práticas
discursivas desenvolvidas por Averil Cameron, conforme seus estudos sobre A Cristandade e a retórica do império.
Do mesmo modo, a atenção à complexidade dos fenómenos culturais, às práticas e
representações, aos discursos e sua recepção tem encontrado contribuições
fundamentais nos diversos autores preocupados em trazer para primeiro plano uma
história cultural da última fase do Império Romano, e este é também o caso de
Ramsay MacMullen, que examina desde os movimentos mais gerais relacionados à
cristianização do Império até aspectos mais específicos como a utilização das
dimensões lúdica e simbólica pelos imperadores romanos no seu relacionamento
com a plebe urbana, a oposição contrastiva entre o soldado romano e o civil, ou
a recepção discursiva do texto religioso. Mas vamo-nos fixar numa obra que
também já se tornou um clássico em termo de reflexão e redefinição de
temporalidades com relação à última fase histórica da Antiguidade Romana.
Atentando para uma
importante questão associada à psicologia social, o historiador irlandês Peter
Brown constrói a sua explicação para o fim do mundo antigo, destacando neste caso o período do
Baixo Império entre os séculos III e IV, a partir de uma análise que ressalta
enfaticamente, como acontecimentos mais relevantes, a cristianização do Ocidente
e a transformação político-militar a partir dos exércitos romanos das
províncias (240 d.C.). Para o primeiro factor, um aspecto ligado a
transformações psicológicas presentes na sociedade, Brown destaca o
pronunciamento no homem comum da necessidade de um deus intimista. Esta mesma
necessidade, que ampara na sociedade mais ampla a cristianização do mundo
antigo, daria origem também ao monacato, que posteriormente viria a desenvolver-se
como uma importante alternativa característica da religiosidade medieval». In José
D’Assunção Barros, Papas, Imperadores e Hereses na Idade Média, Editora Vozes,
2012, ISBN 978-853-264-454-1.
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