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A povoação de Haskells Crossing acorda em torno da sua encosta; o zumbido
monótono e constante do trânsito introduz-se pelas paredes das casas de pinho e
estuque e pelas matas isoladoras por trás delas. Os jornais, o Boston Globe
para ele e o New York Times para ela, já foram entregues. Os pássaros já
despertaram há muito tempo, os tordos picam à procura de vermes, os corvos
escavam os relvados procurando larvas de percevejo, as andorinhas apanham
mosquitos no ar, cada espécie a chamar-se entre si nos seus alegres códigos de
cérebro de ervilha. Bom dia, Júlia!, grita ele para o fundo das escadas, a
caminho da casa de banho. Owen! Já te levantaste!, responde o grito dela. É
claro que estou levantado, querida. Meu Deus, já passa das sete! Quanto mais
velhos ficam, mais falam como crianças. A voz deia chega ao cimo da escada, num
tom ligeiramente reprovador, meio no gozo: dormes sempre até às oito, agora que
não tens nenhum comboio para apanhar.
Querida,
que mentirosa que tu és! Eu nunca durmo depois das sete; quem me dera, continua
Owen, apesar de não ter a certeza se ela se afastou das escadas e se o consegue
ouvir, mas isso é uma das coisas da velhice, acordar com as galinhas. Espera até
acontecer o mesmo contigo. Palermices conjugais, já que se falou em códigos de
cérebro de ervilha. Se o dia fosse um computador, pensa ele, era assim que se
iria reiniciar: a carregar a memória principal, Júlia realmente dorme menos do
que ele (tal como a sua primeira mulher, Phyllis), mas o facto de ela ser cinco
anos mais nova sempre foi para Owen um motivo de orgulho e de estímulo sexual,
tal como a visão dos seus dedos dos pés na frente das chinelas azuis. Ele
também gosta de ver, por baixo do roupão de banho de Júlia, os seus calcanhares
cor-de-rosa a afastarem-se, com os riscos verticais dos tendões de Aquiles a
alternarem a cada passo rápido e firme, com os pés para fora ao modo
característico das mulheres.
Mantêm
esta conversa enquanto Owen está à porta da casa de banho, com a bexiga a doer,
junto às escadas que descem para a cozinha. A imagem da sua amada Júlia,
estendida nua e morta naquele sonho, a sensação de culpa que fazia o seu
suicídio ser, na verdade, um homicídio cometido por ele, ainda estão mais
nítidas do que os pormenores da realidade, o papel de parede com as suas rosas
sépia e um brilho de metal baço, a nova carpete bege do átrio, com a sua base
felpuda, espessa e fofa, o dia à sua frente com horas para escalar como se
fossem os degraus de uma escada velha, perigosa e a abrir rachas. Enquanto se
barbeia ao espelho pendurado junto à janela, onde a sua cara envelhecida,
papuda e estragada pelo sol, cruelmente ampliada, aceita frontalmente a luz
impiedosa, Owen escuta o rouxinol encarrapitado no seu poleiro favorito, no
topo do cedro mais alto, numa longa reprimenda chilreada sobre uma coisa
qualquer, alguma questão procedimental menor mas persistente. Todos estes
níveis da Natureza local, os pássaros, os insectos, a fauna furtiva de esquilos
e de marmotas a correr para dentro e para fora das suas tocas como se uma
caçadeira os pudesse estoirar a qualquer instante, têm a sua própria rede de preocupações
e de comunicações; para eles, o mundo humano é meramente um rebuliço à parte,
uma estática incompreensível, uma interferência intermitente, raramente letal e
sem nenhuma relação perceptível com a abundância orgânica (o lixo, os jardins)
que a espécie humana põe à mesa da Natureza.
Eles
desdenham de nós, pensa Owen. Devíamos ser deuses para eles, mas falta-lhes a
nossa capacidade para venerar, para imaginar, com os terrores e os intrincados
disparates mentais que a imaginação encerra, incluindo a invenção de uma vida póstuma.
Os animais não fazem distinções entre nós e os outros bichos, ou entre nós e as
pedras e as árvores, cada um com o seu cunho e relevância na luta pela
existência. A terra oferece abrigo aos escorpiões, às marmotas e a milhões de formigas;
as estrelas guiam os gansos do Canadá e as gaivinas do Árctico, as andorinhas-das-chaminés
e as borboletas-monarcas nas suas enormes migrações anuais. Nós somos meros
pontos por baixo das suas asas, as nossas cidades são interrupções sujas e estéreis
no discurso de predador e presa. Não, não são interrupções, porque muitas
espécies aceitam as nossas cidades como habitats, não apenas os ratos da cave e
os morcegos do sótão, mas também os falcões e os pombos nos beirados dos
arranha-céus e agora os veados destemidos mas indefesos que atravessam os quintais
dos subúrbios, simultaneamente acarinhados e vistos como pragas». In
John Updike, Pecados e Seduções, 2004, Civilização Editora, 2008, ISBN
978-972-262-676-7.
Cortesia
de CivilizaçãoE/JDACT