terça-feira, 10 de abril de 2018

Pecados e Seduções. John Updike. «Quando era criança, Owen pressupunha que o mundo, de certa maneira, se começava a mover quando ele acordava»

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«(…) Owen estica o lábio inferior para uma raspadela com a lâmina de esguelha, a fazer cócegas. Tenta barbear-se sem ver o seu rosto, que nunca foi exactamente o rosto que ele desejava, demasiado nariz, falta de queixo. Um aspecto de fragilidade atraente, porém, com um olhar penetrante e atento. Ultimamente, os vincos afundaram-lhe os cantos da boca e as pálpebras tornaram-se enrugadas como répteis do deserto, de tal forma que as suas pregas se projectam e lhe pesam sobre as pestanas, pela manhã. Owen detesta aquela sensação familiar de ter alguma coisa nos olhos, imprecisa mas irritante. Pólen. Uma pestana. Um vazo capilar rebentado. Atrás dele, através das matas, o som dos motores, o barulho dos carburadores e os apitos de aviso dos camiões em marcha, atrás deixam perceber a acanhada área comercial de Haskells Crossing, com um quarteirão ou dois de comprimento; é audível mas não é visível da casa dele, no seu esconderijo arborizado ao cimo da encosta. Apesar de conseguir ver claramente as luzes da cidade pelas janelas do andar de cima, Owen nunca encontrou um sítio na cidade de onde a sua casa fosse visível. Isso agrada-lhe; é como a sua consciência, invisível mas central.
Quando era criança, Owen pressupunha que o mundo, de certa maneira, se começava a mover quando ele acordava. O que tinha acontecido antes de acordar era como o tempo antes de ter nascido, um vazio que não conseguia imaginar. Surpreendia-o sempre o facto de as actividades matinais começarem tão cedo, tanto nas povoações como nas cidades, não apenas entre os pássaros do ditado que apanham as minhocas (o pássaro que madruga é que apanha a minhoca), como entre os homens, a pressa para apanharem o comboio das 6h 11m, o dono da mercearia já de volta com a sua camioneta, vindo do mercado ao ar livre junto a Callahan Tunnel, as jovens mães que fazem jogging, já com os seus quilómetros cumpridos antes de esperarem com os seus filhos na paragem do autocarro, os ociosos da povoação já instalados no seu banco junto ao monumento aos mortos da guerra, ali ao lado do antigo edifício em tijolo dos bombeiros, na rua principal, em frente à padaria. O padeiro, um canadiano francófono mal barbeado, com o peito mirrado pelo excesso de cigarros, está a pé desde as quatro, a tingir o ar frio com a fragrância dos croissants no forno, das tortas de canela e dos queques de mirtilo.
Owen consegue ver tudo isto com os olhos da mente, enquanto raspa o resto da espuma de barbear, projectando o queixo curto para a frente para alisar as pregas flácidas lá por baixo. O edifício dos bombeiros, se quiserem saber, é uma construção ornamentada do século XIX, quase demasiado estreita para o camião moderno recentemente adquirido pela Câmara de Cabot City, para a qual Haskells Crossing é um bairro limítrofe; depois de cada chamada, normalmente um falso alarme, o camião volta para a sua garagem, a apitar entusiasticamente, apenas com alguns centímetros de folga de cada lado. O monumento aos mortos da guerra é uma lista de nomes possível de expandir, em letras brancas amovíveis sobre uma superfície preta com ranhuras, por trás de um vidro, com os mortos de Haskells Crossing listados desde as guerras com os franceses e com os índios. O grupo maior está na Guerra Civil, e o seguinte sob a Segunda Guerra Mundial. Por baixo do conflito da Coreia (dois nomes), da intervenção no Vietname (quatro) e da acção de 1991 no Iraque (um único nome, um homem acidentalmente esmagado enquanto ajudava a descarregar um tanque de artilharia pesada MIAI Abrams de dentro de um avião de carga C-5 Galaxy, no aeroporto Al-Jubail, na Arábia Saudita), foi deixado um espaço considerável para baixas Futuras em conflitos futuros. É a economia previdente da Nova Inglaterra: Owen gosta dela. Ele encontrou aqui a sua derradeira povoação». In John Updike, Pecados e Seduções, 2004, Civilização Editora, 2008, ISBN 978-972-262-676-7.
                                                          
Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT