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de wipipedia e jdact
«(…) No começo não foi nada:
arrufos, azedumezinhos, coisicas. História de marido e mulher. E lá iam
vivendo. Mas depois! Depois, pe. Bernardo, que inferno! Aquilo eram brigas a
toda hora, fusquinhas de parte a parte, bate-bocas, nomes feios, ciumadas, o
diabo! Enfim, para coroa disso tudo, lá vai o bruto e enfia a faca na mulher.
Duas facadas! Duas facadas na coxa. Ora, aí está no que deu um casamento tão
bem começado... Numa sangueira, atalhou o padre, numa sangueira de enojar a gente!
O bugre deixou a menina a esvair-se, continuou João Castro. Deixou a menina
quase morta. Ah, o que padeci! A filha a morrer nos meus braços e a cidade
inteira a ferver de mexericos. Que escândalo tremendo! O maior escândalo de São
Paulo. Afinal, pároco, depois de muita barulheira as coisas foram-se arrumando devagarinho:
a menina sarou, o casal separou-se, ele para lá, ela para cá, e a vida, com a
graça de Deus, tornou ao velho ramerrão. Eis que agora, com a chegada do
Príncipe, corre pela cidade um zunzum de enlouquecer um homem. Diga-me lá, pe.
Bernardo, vosmecê ainda não escutou o falatório? Escutei, respondeu o padre com
reserva. Escutei!
Então, reverendo, aqui entre nós,
como amigos, seja franco: que é que vosmecê escutou? Pe. Bernardo aproximou-se
de João Castro. Pigarreou. E confidencial, a voz baixa, murmurou sisudamente: anda
por aí muita coisa. O que anda, porém, de boca em boca, muito falado, é que o
Príncipe antes de entrar na cidade, portou casualmente na chácara de vosmecê,
onde conheceu a sra. Domitila. É verdade? É! Pois bem; dizem então que Sua Alteza,
daí para cá, ficou perdido pela moça. E é um cortejá-la! E um cortejá-la muito
às escâncaras. Com muito desabrimento! Com muito rapapé! Será isso verdade?
João Castro ia responder. Nisso, quebrando
a pacateza da cidadezinha, irrompeu bruscamente larga troada ensurdecedora. Era
a artilharia do Carmo que disparava com estrondo. Eram os sinos de Santa Tereza
que repicavam bimbalhantes. Roquetes e morteiros que salvavam. Girândolas e foguetes
que estouravam no ar. É o príncipe! Enquanto ambos prestavam ouvidos ao
barulho, passos violentos, muito apressados, ecoaram de golpe no corredor. Logo
após, arfando, surgiu na varanda a Titília Castro. Tinha o ar de quem viera
correndo. Estava fremente. Bradou aos dois homens com alvoroço: sabem a grande
novidade? João Castro e pe. Bernardo olharam para a moça com surpresa. Aquele
rompante, aqueles modos, a exaltação da voz, o desabalo dos gestos, tudo
aquilo, assim de imprevisto, veio desentorpecer, como grossa lufada de ar fresco,
a morna pasmaceira dos velhos. Que há, minha filha? Que há? Nossa Senhora! Pois
será que vosmecê ainda não saiba? Nem vosmecê, pároco? Mas que é que
aconteceu?, exclamou o padre com impaciência. Vosmecê assusta a gente! Que há? Vamos!
Desembuche. Diante dos ouvintes, com largo gesto, a filha de João Castro,
rasgadamente, teatralmente, lançou esta coisa enorme: o Príncipe acaba de
proclamar a Independência do Brasil! O coronel e o padre, como tocados por
um ferro em brasa, ergueram-se dum salto. Quê? Quê? O Príncipe acaba de
proclamar a Independência.
Vosmecê está doida, atalhou o padre,
atordoado. Doida! Isso é lá possível? Doida, pe. Bernardo? Doida, eu? Mas é só
ver o que vai pela cidade. Um rebuliço. Bandeiras hasteadas por toda a parte.
Foguetes pelo ar. Já se reuniu o Senado da Câmara. O Largo do Colégio está
assim de povo! Prepara-se já grande manifestação ao Príncipe. Mas isso é um
sonho, exclamava João Castro. É de assombrar!, tartamudeava o pároco. Isto é de
assombrar! Pe. Bernardo agarrou as mãos da moça. E sacudindo-as: como vosmecê
sabe de tudo isso? Como sei? Pois vi, pároco! Viu? Vi. Vi com estes olhos! Mas
viu o quê? Vi tudo! Mas tudo o quê?, bradava o padre, ansiado. Tudo o quê, moça?
Vamos lá, fale! Desembuche! Irra... Eu vi a proclamação, pároco! Viu a proclamação?
Sim, senhor! Vi! A coisa deu-se assim: eu ia à chácara de meu pai, que o reverendo
bem conhece, lá no Ipiranga. Foi quando topei com a Guarda de Honra e a
comitiva do Príncipe sesteando no outeiro...» In Paulo Setúbal, A Marquesa de
Santos, (1925-1935), Wikipédia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN
978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.
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