O
contrato da carne
«(…) No quarto da hospedaria, Valentim
olhou a mulher deitada na cama. A visão do corpo nu da negra causou-lhe tes…e
desejo. Tirou a roupa. Aproximou-se da meretriz.
Quantos anos tens? Dezasseis,
senhor. Põe-te de joelhos, disse Valentim, virando-a de costas.
Escondido pela escuridão da noite,
Bento Amaral Coutinho, a cavalo, atravessou os canaviais da família Gago. Avistou
a casa do engenho ao longe. Tirou duas pistolas de pederneira dos talabartes e
carregou-as, colocando a bala e a pólvora. Aproximou-se com cautela do solar.
Luzes brilhavam no andar superior. Não havia guardas, ou escravos, ou
sentinelas. Puxou as rédeas e o cavalo curveteou, relinchando. Um rosto surgiu à
janela. Ouviu-se ruído de passos na casa. A porta abriu-se e um jovem magro,
usando óculos de vidros grossos, apareceu na varanda. Era o filho do senhor das
plantações. Quem está aí?, perguntou. Esquecestes de mim?, disse Bento,
saltando do cavalo, já empunhando a sua espada. Vim cobrar o que me deveis. O
homem desembainhou a espada e colocou-se em posição de guarda.
Bento aproximou-se, iniciando uma
luta feroz. Feriu-o com muitas estocadas no peito, nos braços, até que o jovem
deixou cair sua a arma. De joelhos, sacou uma faca e perfurou Bento na parte
interna da coxa. Sangue escorreu, entrando pela bota. Bento deu o último golpe
no peito do filho do plantador, matando-o. Dois escravos armados surgiram de trás
da casa. Bento sacou uma das pistolas e disparou. Ele só sabia atirar com a mão
direita, mas a sua pontaria era certeira. Empunhando a outra pistola, matou o
segundo escravo. Com um puxão vigoroso, Bento arrancou a faca da perna,
sentindo uma dor insuportável. O pé estava pegajoso dentro da bota. Rasgou a
camisa e amarrou-a sobre o ferimento. Municiou novamente as suas pistolas.
Arrastando a perna acutilada, entrou na casa e andou pelas salas, atento. Na
cozinha duas negras escondiam-se agachadas atrás do fogão. Correi, correi
daqui, cotias medrosas, disse Bento. As mulheres escaparam pela porta e
desapareceram na escuridão.
Bento revistou a casa até encontrar
o que procurava, um cofre de tamanho médio com o selo da família. Ao arrombá-lo
verificou que continha barras de ouro. Foi buscar os alforjes no seu cavalo e
voltou à casa, enchendo apressadamente os sacos com as barras de metal fundido.
Com a chama das velas do candelabro, ateou fogo às cortinas, que se incendiaram
num instante.
Bateu com força a vergasta no lombo
do cavalo e partiu a galope. Na areia da praia, ao lado de uma canoa, um
remador esperava-o. Bento embarcou rapidamente e a canoa partiu. Durante a
travessia da enseada, Bento assistiu ao incêndio que se alastrara por toda a
casa; o fogo tingia as nuvens de vermelho. O seu ódio foi substituído por
sentimento de glória, que não ia durar muito, ele sabia, mas era agradável. Tinha
que fugir. O homem que matara era de uma família importante. Poderia ir para as
Minas, onde, diziam, não havia justiça nem governo. Apenas montanhas de ouro.
Sentada
na poltrona da sala, na sua casa, Mariana ouvia o ruído do mar ao longe. Sentia
no vento o aroma das flores. Imaginou o seu pai, velho, arrastando-se com uma
bengala, coberto de ouro, cercado de criados e áulicos, a ironia de sempre, a
engenhosa capacidade de ferir as pessoas, dando ordens, não cumprindo as
determinações do cirurgião-barbeiro, blasfemando, esbravejando contra a morte. Ainda
menina, Mariana recebera, uma noite, ordem de seu pai, Afonso, para que fosse à
sala de biblioteca. Ela entrara, assustada. Sempre que o pai tinha uma repreensão
ou castigo para as filhas chamava-as a tal lugar. O barão, em pé, diante da
mesa, parecera-lhe um gigante. Batendo ritmadamente o chicote na mão, perguntara
se ela estava pretendendo aprender a ler. Apontara com o chicote para um volume
sobre a mesa, uma cartilha das primeiras letras. Mariana baixara os olhos,
sentindo o sangue tomar-lhe o rosto. O pai Afonso pegara o livro e aproximara-o
da chama da vela. A cartilha demorou a pegar fogo e lentamente foi-se
consumindo. Cuida-te com os teus desejos, dissera. Se eles te tomam, e não tu a
eles, vais arder no fogo do inferno. No seu quarto, a velha aia Sofia esperava-a,
com uma vara na mão. Tira a roupa, dissera a alemã. Essas meninas da colónia são
educadas como vacas. Que mal há em saber ler? As freiras não aprendem nos
conventos? Na minha terra todas as mulheres sabem letras. Sabeis ler, dona
Sofia? Cala-te, menina. Tira a roupa. Mariana, nua, curvada sobre o baú,
esperara. Trata de gritar bem alto para que o teu pai ouça, Sofia sussurrara. E
aplicara, sem nenhuma força, vinte vergastadas nas costas de Mariana, para
cumprir a ordem do pai». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora
Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
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