quarta-feira, 2 de maio de 2018

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Mais uma vez, no jogo político de Castela e Portugal faltava a peça que o infante Pedro, o infeliz tio de Afonso V, podia ter jogado se a sua visão política tivesse sido concretizada»

jdact

O Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Prontificou-se a defender a Rainha de Castela, a excelente senhora, a sobrinha, e a casar com ela. O Conselho reunido consistiu num diálogo de surdos porque o Rei, com o apoio do Príncipe, já decidira. Os nobres negaram-se, na sua maioria, a apoiar a ideia. Os renitentes foram liderados por Jorge Costa, a quem o Príncipe, depreciativamente, mais tarde e, depois, já Rei, chamava O Alpedrinha, referindo-se à aldeola suja onde o Cardeal nascera numa choupana humilde, e pelo futuro duque de Bragança, conde de Guimarães. Seria uma loucura, um acto suicida, o Rei de Portugal ir meter-se no vespeiro das controversas ambições das facções castelhanas... Só que, se para Afonso a questão era moral, familiar, para o Príncipe ela era de Estado. Isso eles não compreenderiam. Penso que na mente do Príncipe, o sonho da união das coroas de Portugal e Castela já nascera. Ele que lera Cícero, Séneca, a História dos Imperadores, a de Ciro e Alexandre, ele que conhecia já a ciência política e a sua filosofia de poder apoiava as pretensões do pai por razões que nem o duque, nem a maioria da fidalguia, nem o Alpedrinha conheciam. O futuro conde de Penamacor, Lopo Albuquerque, partiu para Castela e, depois, o avisado Rui Sousa, com cartas d’El Rei para fidalgos que o aceitassem como Rei e como embaixador a Valladolid aos Reis de Castela, Fernando e Isabel, mas isso de nada serviu, pois estavam, segundo suas razões, no direito de cingir a Coroa. Era a guerra.
Em Arronches, Afonso, perante as Cortes, pegando na mão do filho, disse aos seus homens bons, prelados e cavaleiro. Aqui vos entrego, vassalos, ao Príncipe, em amor mais vosso filho que meu, para que vos governe durante a minha ausência, porque só à sua virtude confiaria o vosso governo. Foi então que chegou a notícia de que a nora dera à luz, em Lisboa, um filho varão. Esse facto punha de novo o problema da sucessão, no caso do Rei ter filhos do seu casamento em Castela. Afonso, no entanto, já não levantava um dedo sem que ouvisse a opinião do filho. Aquele homem, que fora esbelto e perfeito, agora engordara, ficara calvo, cansava-se com certa facilidade, mas ainda era robusto e de alma viril. Com o filho deixava de ser o pai. Os papéis trocavam-se. O jovem Príncipe, sempre respeitoso, amável e cortês, no entanto, dominava a alma do pai. Às vezes até parecia embalá-lo, como se o Rei fosse uma criança, mas fazia-o sabiamente sem que ele se apercebesse ou se sentisse molestado. Não, a questão da herança seria regulada a contento de Portugal. Se algo acontecesse ao Príncipe, só o filho, Afonso, seria o Rei de Portugal e não quaisquer outros filhos de Afonso, se os tivesse em Castela.
O Príncipe acompanhou o pai e despediu-se dele em Pedra Buena. O Rei seguiu para Placência, onde oficialmente se realizaram os seus desponsórios com dona Joana. Passou a intitular-se Rei de Portugal, de Castela e Aragão. Bem-intencionado, mau político, habituado à sua Corte de nobres satisfeitos, de barriga cheia e repletos de bonomia perante um Rei cavaleiro, bondoso e aberto a todas as concessões e regalias que requeriam, Afonso não conseguiu reunir à sua volta o grosso do partido nacional castelhano que ia engrossando à custa da astúcia de Isabel de Castela e Fernando de Aragão que, por sua vez, se preparavam para abrir o caminho da glória na política e na história das Espanhas.
Mais uma vez, no jogo político de Castela e Portugal faltava a peça que o infante Pedro, o infeliz tio de Afonso V, podia ter jogado se a sua visão política tivesse sido concretizada e não acabasse no atoleiro miserável de Alfarrobeira. Ainda se Pedro Urgel, quarto de Aragão, tivesse sobrevivido! Mas morrera há anos. Henrique IV teria tido, ou a filha, outro apoiante. Agora isso não era possível». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT