O
Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Prontificou-se a defender a Rainha
de Castela, a excelente senhora, a sobrinha, e a casar com ela. O Conselho
reunido consistiu num diálogo de surdos porque o Rei, com o apoio do Príncipe,
já decidira. Os nobres negaram-se, na sua maioria, a apoiar a ideia. Os renitentes
foram liderados por Jorge Costa, a quem o Príncipe, depreciativamente, mais
tarde e, depois, já Rei, chamava O Alpedrinha, referindo-se à aldeola suja
onde o Cardeal nascera numa choupana humilde, e pelo futuro duque de Bragança,
conde de Guimarães. Seria uma loucura, um acto suicida, o Rei de Portugal ir
meter-se no vespeiro das controversas ambições das facções castelhanas... Só
que, se para Afonso a questão era moral, familiar, para o Príncipe ela era de
Estado. Isso eles não compreenderiam. Penso que na mente do Príncipe, o sonho
da união das coroas de Portugal e Castela já nascera. Ele que lera Cícero,
Séneca, a História dos Imperadores, a de Ciro e Alexandre, ele que conhecia já
a ciência política e a sua filosofia de poder apoiava as pretensões do pai por
razões que nem o duque, nem a maioria da fidalguia, nem o Alpedrinha conheciam.
O futuro conde de Penamacor, Lopo Albuquerque, partiu para Castela e, depois, o
avisado Rui Sousa, com cartas d’El Rei para fidalgos que o aceitassem como Rei
e como embaixador a Valladolid aos Reis de Castela, Fernando e Isabel, mas isso
de nada serviu, pois estavam, segundo suas razões, no direito de cingir a
Coroa. Era a guerra.
Em Arronches, Afonso, perante as
Cortes, pegando na mão do filho, disse aos seus homens bons, prelados e
cavaleiro. Aqui vos entrego, vassalos, ao Príncipe, em amor mais vosso filho
que meu, para que vos governe durante a minha ausência, porque só à sua virtude
confiaria o vosso governo. Foi então que chegou a notícia de que a nora dera à
luz, em Lisboa, um filho varão. Esse facto punha de novo o problema da sucessão,
no caso do Rei ter filhos do seu casamento em Castela. Afonso, no entanto, já
não levantava um dedo sem que ouvisse a opinião do filho. Aquele homem, que
fora esbelto e perfeito, agora engordara, ficara calvo, cansava-se com certa
facilidade, mas ainda era robusto e de alma viril. Com o filho deixava de ser o
pai. Os papéis trocavam-se. O jovem Príncipe, sempre respeitoso, amável e cortês,
no entanto, dominava a alma do pai. Às vezes até parecia embalá-lo, como se o
Rei fosse uma criança, mas fazia-o sabiamente sem que ele se apercebesse ou se
sentisse molestado. Não, a questão da herança seria regulada a contento de
Portugal. Se algo acontecesse ao Príncipe, só o filho, Afonso, seria o Rei de
Portugal e não quaisquer outros filhos de Afonso, se os tivesse em Castela.
O Príncipe acompanhou o pai e
despediu-se dele em Pedra Buena. O Rei seguiu para Placência, onde oficialmente
se realizaram os seus desponsórios com dona Joana. Passou a intitular-se Rei de
Portugal, de Castela e Aragão. Bem-intencionado, mau político, habituado à sua Corte
de nobres satisfeitos, de barriga cheia e repletos de bonomia perante um Rei
cavaleiro, bondoso e aberto a todas as concessões e regalias que requeriam, Afonso
não conseguiu reunir à sua volta o grosso do partido nacional castelhano que ia
engrossando à custa da astúcia de Isabel de Castela e Fernando de Aragão que,
por sua vez, se preparavam para abrir o caminho da glória na política e na
história das Espanhas.
Mais
uma vez, no jogo político de Castela e Portugal faltava a peça que o infante Pedro,
o infeliz tio de Afonso V, podia ter jogado se a sua visão política tivesse
sido concretizada e não acabasse no atoleiro miserável de Alfarrobeira. Ainda
se Pedro Urgel, quarto de Aragão, tivesse sobrevivido! Mas morrera há anos.
Henrique IV teria tido, ou a filha, outro apoiante. Agora isso não era possível».
In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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