O
Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Existira outro pretendente ao
trono de Castela, o infante Afonso, filho de Isabel de Portugal e de João II, e
bisneto, portanto, do velho Bragança, dessa filha do infante João, que era mãe
também da Isabel que agora se intitulava Rainha e herdeira do irmão pederasta
ou impotente, o monstruoso e fraco Henrique IV. No entanto, cedo os que tinham
apoiado Afonso passaram para o lado oposto porque o jovem morreu e as
más-línguas diziam que envenenado…, depois da Beltraneja ficar (mais
uma vez!) noiva desse tio. Entretanto, o Rei Henrique fizera Beltran duque de
Albuquerque e as coisas complicaram-se. Levantou-se um portentoso motim. Henrique
foi deposto, em Ávila, e a sua efígie, com a do irmão Afonso e a da filha, ferozmente
queimadas. Foi então que a Rainha dona Joana procurara Afonso na Guarda, mas
este, na altura, recusou a meter-se no vespeiro... Só que em Dezembro de 1474
Henrique morria e de novo, e definitivamente, se repunha o problema. Claro que Afonso
pensava candidamente que a França o apoiaria, pois Luís XI estava em guerra com
o Aragão mas tal não aconteceu. O ingénuo Afonso jamais poderia confrontar-se
com o subtil Rei cie França nem a bem nem a mal..., e muito menos, como se viu,
contar com ele.
Em Placência. o casamento não se consumou
porque não fora concedida ainda a autorização papal, mas os títulos eram válidos
para Afonso e dona Joana como Reis. A divisão em Castela apertava o seu cerco.
Uns apoiavam dona Joana, mas as divergências avolumavam-se. As notícias chegavam
ao Reino com grandes lacunas. Por essa altura eu já estudava os primórdios da Física
e tornava-me aprendiz de cirurgião, com a ajuda de mestre Bartolomeu que me não
curara, mas era bom físico e até operava as cataratas. Visitava um dia meu tio Gil
quando lhe propus a leitura de um manuscrito que encetara sobre Alexandre. Ele sorriu
e mostrou-me algo que me deixou siderado. No scriptorium do Mosteiro faziam-se
cópias e raspavam-se obras antigas. Ele trouxe um rolo de pergaminho que o tempo
tornara amarelo-escuro e com manchas cinzentas. Abriu-o cuidadosamente sobre a mesa
de carvalho que o fogo da chaminé nas noites de Inverno também curtira e a que
dera a cor do bronze fundido: vê bem, rapaz. Frei Sancho, o raspador, trouxe-me
isto. Mirei, estupefacto. O monge raspara, mas a espessura da pele mantivera parte
do texto porque a tinta penetrara fundo. Santo Deus! Está escrito em grego! É grego,
não é, tio?
É!
Vê esta palavra, filho. ALEXANDROS, soletrou. Fiquei tão comovido que me apeteceu
chorar. Quem fez isto?, perguntei. Não te exaltes. É necessário aproveitar o pergaminho
antigo. Bem sei que agora, com a nova técnica inventada na Alemanha, os livros são
diferentes. Já há vinte anos, quase, no tempo de Gonçalo Enes, que vieram gramáticas
da arte nova para as infantas dona Joana e dona Catarina, a mando do Rei. Gonçalo
Enes era tesoureiro das infantas e mandou vir, parece, que da Alemanha, ou da
França, não sei, os livros. Este é dos antigos, tal como a maior parte dos que
possuímos nas nossas casas e bibliotecas. Leva-o a mestre Tadeu. Ele conhece o grego,
esse malvado judeu! Em baixo, pois o manuscrito já fora raspado e reescrito, ainda
li a frase: orai a Deus pelo copista. Orai a Deus! Onde estaria aquele monge morto
há séculos, cego certamente, de uma vida inteira debruçado sobre velhas páginas
de pergaminho, e onde estaria a sua alma e o seu corpo?» In Seomara Luzia da Veiga
Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995,
4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia de EPresença/JDACT