quarta-feira, 2 de maio de 2018

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «É! Vê esta palavra, filho. ALEXANDROS, soletrou. Fiquei tão comovido que me apeteceu chorar. Quem fez isto?»

jdact

O Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Existira outro pretendente ao trono de Castela, o infante Afonso, filho de Isabel de Portugal e de João II, e bisneto, portanto, do velho Bragança, dessa filha do infante João, que era mãe também da Isabel que agora se intitulava Rainha e herdeira do irmão pederasta ou impotente, o monstruoso e fraco Henrique IV. No entanto, cedo os que tinham apoiado Afonso passaram para o lado oposto porque o jovem morreu e as más-línguas diziam que envenenado…, depois da Beltraneja ficar (mais uma vez!) noiva desse tio. Entretanto, o Rei Henrique fizera Beltran duque de Albuquerque e as coisas complicaram-se. Levantou-se um portentoso motim. Henrique foi deposto, em Ávila, e a sua efígie, com a do irmão Afonso e a da filha, ferozmente queimadas. Foi então que a Rainha dona Joana procurara Afonso na Guarda, mas este, na altura, recusou a meter-se no vespeiro... Só que em Dezembro de 1474 Henrique morria e de novo, e definitivamente, se repunha o problema. Claro que Afonso pensava candidamente que a França o apoiaria, pois Luís XI estava em guerra com o Aragão mas tal não aconteceu. O ingénuo Afonso jamais poderia confrontar-se com o subtil Rei cie França nem a bem nem a mal..., e muito menos, como se viu, contar com ele.
Em Placência. o casamento não se consumou porque não fora concedida ainda a autorização papal, mas os títulos eram válidos para Afonso e dona Joana como Reis. A divisão em Castela apertava o seu cerco. Uns apoiavam dona Joana, mas as divergências avolumavam-se. As notícias chegavam ao Reino com grandes lacunas. Por essa altura eu já estudava os primórdios da Física e tornava-me aprendiz de cirurgião, com a ajuda de mestre Bartolomeu que me não curara, mas era bom físico e até operava as cataratas. Visitava um dia meu tio Gil quando lhe propus a leitura de um manuscrito que encetara sobre Alexandre. Ele sorriu e mostrou-me algo que me deixou siderado. No scriptorium do Mosteiro faziam-se cópias e raspavam-se obras antigas. Ele trouxe um rolo de pergaminho que o tempo tornara amarelo-escuro e com manchas cinzentas. Abriu-o cuidadosamente sobre a mesa de carvalho que o fogo da chaminé nas noites de Inverno também curtira e a que dera a cor do bronze fundido: vê bem, rapaz. Frei Sancho, o raspador, trouxe-me isto. Mirei, estupefacto. O monge raspara, mas a espessura da pele mantivera parte do texto porque a tinta penetrara fundo. Santo Deus! Está escrito em grego! É grego, não é, tio?
É! Vê esta palavra, filho. ALEXANDROS, soletrou. Fiquei tão comovido que me apeteceu chorar. Quem fez isto?, perguntei. Não te exaltes. É necessário aproveitar o pergaminho antigo. Bem sei que agora, com a nova técnica inventada na Alemanha, os livros são diferentes. Já há vinte anos, quase, no tempo de Gonçalo Enes, que vieram gramáticas da arte nova para as infantas dona Joana e dona Catarina, a mando do Rei. Gonçalo Enes era tesoureiro das infantas e mandou vir, parece, que da Alemanha, ou da França, não sei, os livros. Este é dos antigos, tal como a maior parte dos que possuímos nas nossas casas e bibliotecas. Leva-o a mestre Tadeu. Ele conhece o grego, esse malvado judeu! Em baixo, pois o manuscrito já fora raspado e reescrito, ainda li a frase: orai a Deus pelo copista. Orai a Deus! Onde estaria aquele monge morto há séculos, cego certamente, de uma vida inteira debruçado sobre velhas páginas de pergaminho, e onde estaria a sua alma e o seu corpo?» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT