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E fr. Sampaio? Aquele tonto do franciscano vive a pregar sermões de mil demos,
a acolher o Príncipe na sua cela, a tramar com Sua Alteza planos de independência.
E os clubes então! Hein, coronel? Que me diz do Clube da Resistência! Vamos lá:
que é que vosmecê diz daquilo? Mas não é só. Infelizmente, não é só. Veja lá esse
tal decreto do cumpra-se! E a convocação da Assembleia! E as representações de
9 de Janeiro! E o fico! E o fico, hein, João Castro? Que tal a brincadeira?
Ainda vosmecê acha que isso tudo são moinhos de vento? Pois olhe, coronel, confesso-lhe
uma coisa: para mim, naquele dia em que o Clemente Pereira, depois do seu falatório,
debruçou-se numa das sacadas do Paço e gritou à multidão que se estacionava
fora: o Príncipe manda dizer que fica, nesse dia, escute bem!, nesse dia o
Brasil separou-se de Portugal...
Vosmecê aumenta muito, pároco! Não
é assim! As coisas ainda não chegaram a esses extremos. Creia, pe. Bernardo,
essas arengas e essas discurseiras são tudo fogo de palha. Tudo é coisa de
pouca monta. O principal é tropa e munição. No dia em que aportarem por cá
fragatas bem recheadas de soldados, já não há mais independência. Com dois canhões
assentados no Morro do Castelo qualquer fuzileiro faz calar a boca dos patriotas...
Esta demasiada confiança de vosmecê, como de tantos outros portugueses, é o que
nos vai perder, coronel. Não há tropa que consiga abafar tanta fervedura. É tudo
a conspirar contra Portugal. Tudo! Demais, para remate, aí está esse José Bonifácio,
esse perigoso Primeiro-Ministro, que maneja o Príncipe a seu talante, que move
os gestos de Sua Alteza, como quem move um polichinelo de cordel.
Ora, aí está, exclamou João Castro,
ora aí está! O pároco acha que eu exagero pouco as coisas; pois eu acho que
vosmecê enxerga demasiado. Afinal de contas, diga-me lá: que grande perigo pode
haver em José Bonifácio? Tanto se fala nesse homem! Tanto se fala nos Andradas!
No entanto, José Bonifácio é ministro como outro qualquer. Não é melhor nem
pior. Que é que tem o Primeiro-Ministro de diferente? Que é que tem? Vosmecê
está zombando, coronel! José Bonifácio é a primeira cabeça do Brasil. Ou será que
vosmecê ainda não ouviu dizer que o Primeiro-Ministro é um sábio? Pois o é, coronel.
E grandíssimo! Esse homem, que eu conheci no Reino, leccionando em Coimbra,
espantou Portugal inteiro com a sua ciência. E não foi só Portugal: foi a
Europa toda...
Depois de fungar nova pitada,
despeitado e azedo, pe. Bernardo rumou contra José Bonifácio. Pois vosmecê
ainda não atentou no poderio deste homem? Mas é só ver as coisas. Olhe o caso
da bernarda. Vai o Francisco Inácio e escorraça o Martim cá da Província. Que é
que acontece? José Bonifácio, não sei com que manhas, nem com que artes, faz o
Príncipe acolher o irmão com todo o agasalho, cobri-lo de todas as honrarias, e
até, isto é que é!, até convidá-lo para ministro. Lá está como Ministro da Fazenda.
Que escândalo! Mas a coisa não pára aí. Chega o Príncipe agora em São Paulo.
Sabe o primeiro cuidado que teve? No Paço, em presença de toda a gente, só para
desafrontar os Andradas, recusa-se a dar a mão e beijar a Francisco Inácio!
Pode haver maior acinte? Impossível! Pois o Príncipe não se contentou com tudo
isso. Monta a cavalo e toca para Santos. E que é que vai fazer Sua Alteza em
Santos? Uma coisa só: visitar a família de José Bonifácio. Ora, com franqueza,
isto é demais. E demais, coronel! É por isso que eu não me canso de repetir a Vossa
Senhoria: a hora da separação está soando! E está soando porque José Bonifácio é
separatista. Com um homem deste prestígio, com um brasileiro destes a dirigir
os negócios da colónia, está bem visto que a causa da Independência ganhou a
sua vitória.
Pois seja o que Deus quiser, pe. Bernardo,
atalhou João Castro, com filosofia. A mim já não me afligem coisas políticas. Não
aspiro outra coisa senão a uma velhice em paz. Mais nada! Tenho sofrido muito,
pe. Bernardo... Tenho sofrido muito! O velho pároco sentiu o tom melancólico do
amigo. Abrandou logo as suas iras portuguesas. Sabia bem o padre a causa
daquelas amarguras. E meneou a cabeça com tristeza: tem razão, coronel! Tem muitíssima
razão! Aquele casamento da sra. Domitila foi um desastre. Foi um raio, pe.
Bernardo, exclamou o velho com vivacidade. Foi um raio que me caiu em casa!
Nunca imaginei, na minha vida, que aquele casório, festejado com tanto gosto, viesse
a ter um dia o desfecho que teve! Ah, pe. Bernardo, que desmoronamento!» In
Paulo Setúbal, A Marquesa de Santos, (1925-1935), Wikipédia, Editora Geração
Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.
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