jdact
O Anjo da Neve
«(…) Não se via um palmo à frente
dos olhos quanto mais sol que rebenta as pedras. Estava tudo branco, só branco,
em cima, em baixo, de lado. Era como estar envolvidos num lençol. Era o exacto
oposto da escuridão, mas Alice tinha medo na mesma. Deslizou para a beira da
pista de esqui em busca de um montinho de neve fresca onde pudesse aliviar-se.
Os seus intestinos fizeram um ruído de máquina de lavar a louça a entrar em
acção. Voltou-se para trás. Já não via Giuliana, por isso, Giuliana não a podia
ver a ela- Subiu a encosta alguns metros, pondo os esquis em espinha de peixe,
como a obrigava a fazer o pai quando pôs na cabeça que tinha que a ensinar a
esquiar. Para cima e para baixo na pista de esqui infantil, trinta a quarenta vezes
num só dia. Subia em passo de escadinhas e descia em estilo limpa-neve, pois que
comprar o passe de esqui para uma só pista era desperdício de dinheiro, sem
contar que, deste modo, também treinava as pernas.
Alice desapertou os esquis e deu
mais alguns passos. Enterrou as botas até meio da barriga das pernas. Finalmente
estava sentada. Deixou de reter a respiração e relaxou os músculos. Uma agradável
descarga eléctrica propagou-se pelo corpo todo para depois se aninhar nas
pontas dos pés. Deve ter sido o leite, seguramente foi o leite. Deve ter sido
também por ter as nádegas quase congeladas por estar sentada na neve a mais de
dois mil metros de altitude. Nunca tal lhe acontecera, pelo menos que ela
recordasse. Nunca, nem uma vez. Aliviou-se pernas abaixo. Não chichi. Não só. Alice
borrou-se toda, às nove em ponto de uma manhã de Janeiro. Borrou-se nas cuecas
e nem sequer se apercebeu. Pelo menos até ouvir a voz de Eric vinda de um ponto
indefinido dentro do banco de nevoeiro, a chamar por ela. Levantou-se num ápice
e foi nesse momento que sentiu algo de pesado nas entrepernas das calças. Instintivamente
tocou no rabo, mas as luvas tiraram-lhe a sensibilidade. De qualquer modo, não
era preciso, pois já percebera tudo. E agora, que faço, questionou-se.
Eric chamou-a de novo, Alice não
respondeu. Enquanto estivesse ali em cima o nevoeiro escondê-la-ia. Podia
baixar as calças do fato de esqui e limpar-se com neve, ou então, ir ter com Eric
e segredar-lhe ao ouvido o que lhe acontecera. Podia dizer-lhe que tinha de
regressar à aldeia pois estava a doer-lhe o joelho. Ou então, borrifar-se para
o sucedido e esquiar mesmo naquele estado, tendo o cuidado de ser sempre a última
da fila. Mas, ao invés, deixou-se simplesmente ficar ali, atenta a não mexer um
só músculo, protegida pelo nevoeiro. Eric chamou-a pela terceira vez. Mais alto».
In
Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José Serra,
Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT