domingo, 6 de maio de 2018

A Sagrada Família. Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). «A natureza de nosso objecto justifica, portanto, o facto de aqui não avaliarmos esse mesmo desenvolvimento»

Cortesia de wikipedia e jdact

A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes
«O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espiritualismo, ou idealismo especulativo, que, no lugar do ser humano individual e verdadeiro, coloca a autoconsciência ou o espírito e ensina, conforme o evangelista: o espírito é quem vivifica, a carne não presta. Resta dizer que esse espírito desencarnado só tem espírito em sua própria imaginação. O que nós combatemos na Crítica baueriana é justamente a especulação que se reproduz à maneira de caricatura. Ela representa, para nós, a expressão mais acabada do princípio cristão-germânico, que faz sua derradeira tentativa ao transformar a crítica em si numa força transcendental. Nossa exposição se atém principalmente ao Jornal Literário Geral de Bruno Bauer, e seus oito primeiros cadernos estavam a nosso dispor, porque é ali que a Crítica baueriana, e com ela o despropósito da especulação alemã como um todo, alcançam o ápice. A Crítica crítica (ou seja, a crítica do Jornal Literário) torna-se tanto mais instrutiva quanto mais converte a inversão da realidade, empreendida através da filosofia, na mais plástica das comédias. Veja-se, por exemplo, Faucher e Szeliga. O Jornal Literário oferece um material à luz do qual também o grande público poderá ser informado a respeito das ilusões da filosofia especulativa. E é essa a finalidade de nosso trabalho. A nossa exposição naturalmente é condicionada por seu objecto. Em regra, a Crítica crítica se encontra abaixo das alturas alcançadas pelo desenvolvimento teórico alemão. A natureza de nosso objecto justifica, portanto, o facto de aqui não avaliarmos esse mesmo desenvolvimento. Crítica crítica obriga, muito antes, a mostrar a validade dos resultados já disponíveis como tais, opondo-os aos resultados que ela alcançou. É por isso que antepomos essa polémica aos escritos propriamente ditos, nos quais nós, cada um por si, entenda-se, haveremos de expor nossa visão positiva, e com ela nossa atitude positiva ante as novas doutrinas filosóficas e sociais». In Engels – Marx. Paris, Setembro de 1844.

A Crítica crítica sob a feição do mestre encadernador ou a Crítica crítica conforme o senhor Reichardt. Friedrich Engels
A Crítica crítica, por mais que se considere acima da massa, sente uma compaixão infinita pela mesma massa. Foi tão grande o amor da Crítica pela massa que ela enviou o seu próprio filho unigénito a fim de que todos os que crerem nele se salvem e gozem as venturas da vida crítica. E eis que a Crítica se torna massa e habita entre nós, e nós vemos na sua magnificência a magnificência do filho unigénito do pai. Quer dizer, a Crítica torna-se socialista e fala de escritos sobre o pauperismo. Ela não vê um assalto no facto de querer ser igual a Deus, mas apenas renuncia a si mesma e assume a feição de mestre encadernador, rebaixando-se ao nível mais absurdo, sim, ao absurdo crítico em línguas estrangeiras. Ela, que em sua pureza virginal e celeste, retrocedia assustada diante do contato com a massa pecadora e leprosa, dominou-se a ponto de dar importância a Bodz (pseudónimo que Reichardt inventou para Charles Dickens, Boz, na verdade) e todos os escritores-fonte do pauperismo, marchando há anos passo a passo com o mal de nossa época; ela desdenha escrever aos eruditos especializados e escreve para o grande público, afasta todas as expressões de carácter estranho, todo o cálculo latino, todo o jargão corporativo, tudo isso ela afasta dos escritos de outros, pois seria querer pedir demais desejar que a Crítica se submetesse, ela mesma, a este regulamento da administração. Todavia até mesmo isso ela chega a fazer, em parte, pelo menos, desembaraçando-se com admirável facilidade, se não das palavras em si, pelo menos do seu conteúdo; e quem haverá de acusá-la de fazer uso da grande pilha de palavras estrangeiras ininteligíveis, se ela mesma nos obriga a chegar a essa conclusão através de manifestações sistemáticas que dão conta de que essas palavras permaneceram ininteligíveis também para ela? Algumas provas dessa manifestação sistemática:

Por isso lhes são abomináveis as instituições do pauperismo.
Uma lição de responsabilidade, na qual toda emoção do pensamento humano se converte na imagem da mulher de Ló.
Sobre a pedra que coroa este edifício artístico, de facto rico em convicções.
Este é o conteúdo fundamental do testamento político de Stein, que o grande estadista entregou antes mesmo de se despedir do serviço activo do governo e de todos seus escritos.
Este povo não possuía ainda nenhumas dimensões para uma liberdade tão ampla.
Porquanto ele, no fim de seu escrito publicista, parlamentou com relativa certeza, assegurando que falta apenas confiança.
Ao juízo varonil que levanta o Estado, que sabe elevar-se acima da rotina e do temor pusilânime, que se forjou na história e se nutriu com viva intuição nas instituições públicas estrangeiras.
[…]
Ao povo, ao qual também o senhor Brüggemann distribui a certidão de baptismo da sua emancipação.
Uma contradição bastante vivaz contra as demais determinações, proclamadas na obra com respeito aos dotes vocacionais do povo.
O egoísmo enfadonho dissolve todas as quimeras da vontade nacional com rapidez.
A paixão de adquirir muito etc., esse era o espírito que permeou toda a época da Restauração e que se integrou aos novos tempos com uma quantidade bastante significativa de indiferença (as construções bizarras do senhor Reichardt são um dos pontos criticados com dureza por Engels).
O obscuro conceito de significação política, passível de ser encontrado na nacionalidade prussiana de carácter rural, descansa sobre a lembrança de uma grande história.
[…]
In Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), A Sagrada Família, A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes, 1844, 1965, Boitempo Editorial, 2003, ISBN 978-857-559-032-4.

Cortesia de BoitempoEditorial/JDACT