A morte de Lancelot
«(…) Embora João sempre tivesse achado,
o que evidentemente nunca referiu em público, que o pai era dotado de uma
tremenda falta de senso político, e o jovem bem podia, já nessa altura, dar-lhe
alguns ensinamentos, apoiava o pai contra as opiniões do Conselho.
Evidentemente que o Príncipe era novo, nimbado recentemente dos louros da
glória em Arzila, e a luta, a guerra, no plano pessoal, como guerreiro,
agradavam-lhe, mas não tenho dúvidas de que a esse seu entusiasmo presidia mais
que uma simples vaidade pessoal. O duque de Bragança sentiu-se aborrecido com a
premente oposição do real primo e até a sua obstinada pressão sobre os conselheiros
para apoiarem as pretensões do Rei a casar com a juvenil Princesa de Castela e
envolver-se numa guerra que em breve se traduziria por muito mais que a simples
interferência de um país, cujo exército ia meter-se na luta intestina entre
duas facções que se digladiavam além-fronteiras, mas no grave litígio entre
duas Coroas.
O chanceler Rui Gomes Alvarenga,
um velho com idade de ser pai do Rei, opôs-se frontalmente e as razões eram
muitas, de peso e, de entre elas, a que se prendia com o facto de o Rei não
ser homem destinado a tal empresa. Mas o Príncipe sonhava com a Coroa de
Castela. Na sua alma ávida, educada pela leitura dos textos latinos e gregos,
por Aristóteles e Cícero, pela história de César, brotava a semente do futuro. Hoje
sei o que ele pensou. Aliás, comecei a compreender logo antes da morte do pai… Fernando
de Aragão e Isabel de Castela não estavam minimamente interessados em largar
para Portugal a Coroa de Castela. Que o primo se casasse com a Beltraneja era
redondo disparate, mas que pusesse em causa a legítima herança de Isabel, isso
nunca! Era a guerra.
Não sei o que a jovem dona Joana,
então apenas com treze anos, pensou daquele seu cavaleiro andante, quase com quarenta
anos, ou já nos quarenta, de barba cerrada e calvo, que fora já elegante, mas começava
a ficar obeso, respirando com dificuldade quando se cansava, embora de cândido
e sorridente olhar. Ainda há pouco largara as suas bonecas de criança e, embora
a sua idade fosse já a conveniente para umas bodas, não sei se teria visto
nesse bem-intencionado Lancelot de meia-idade mais que a pedra necessária ao
seu mantimento no trono do pai contra as violentas oposições e desejos
exacerbados de Fernando e Isabel. De resto, ela foi, toda a vida o seria, apenas
o peão no tabuleiro de xadrez do jogo peninsular, desde as estúpidas decisões
do pai, que lhe negara a paternidade em Toros de Guisando, até, depois, às labirínticas
opções do Príncipe João, em 1480 e, depois como Rei, quando ergueu o seu
estandarte à custa dela e do seu nome para pressionar os Reis vizinhos. Dona
Joana também não desejava morrer como o seu hipotético noivo, Afonso, talvez
envenenado por Fernando e Isabel, como lhe sussurravam seus apoiantes, e, de
entre eles, o arcebispo de Toledo.
Dona Joana era bonita, embora sem
a estonteante beleza da mãe nem aquela auréola fascinante das mulheres que
nascem com um destino especial. Não se podia exigir mais de uma rapariguinha
tímida, frágil, sempre empurrada pelas ambições da Corte e ferida no seu íntimo
orgulho pela terrível mácula de bastardia que a marcaria até à morte como um
ferrete de patíbulo. Vítima eterna, dona Joana não teve nenhuma oportunidade na
vida e também nunca ninguém a deixou exprimir-se em liberdade. Pertence àquele
tipo de seres a quem o destino tudo roubou menos a agonia de se saberem
condenados ao silêncio, porque só o facto de existirem lhes retira o direito
mínimo a um lugar e à felicidade na Terra. Conheci, ao longo da minha vida,
e sem sangue real, outras pessoas como ela.
Afonso
de Portugal não conseguiu mais na sua campanha em Castela que andar em círculos
como um cão atrás da cauda. Ele e o seu exército. O Verão escoou-se sem que uma
saída definitiva brilhasse no escuro horizonte das ambições do Rei português.
Não fui recrutado, como muita gente que conheci, mas dois serviçais do mercador
Bartolomeu Lagos e três braceiros amigos de Rainiero por lá andaram e no
regresso, um deles ficou sem uma perna e outro morreu, os sobreviventes
contavam o que foi aquele cirandar sem descanso, com um Verão tórrido que fazia
arder o couro e as roupagens debaixo das couraças e das cotas, e as lâminas e
ferros, depois da soalheira, em água, até ferviam em vapores como os do
Inferno. Nem um nem outro, que relataram a campanha, sabiam Latim, nem ler nem
escrever, é o mais certo e, se o conseguiam, era à custa do suor e do tempo a
juntar, letra a letra, a palavra que a tinta negra do copista desenhara, mas
quantas vezes eu recordei, naquele quadro ardente de homens em guerra
cirandando por terras estrangeiras, Horácio: nos manet Oceanus circumvagus;
arua. beata petamus arua, divites et insulas...» In Seomara Luzia da Veiga
Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995,
4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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