domingo, 27 de maio de 2018

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Todos falaram; todos exaltaram o espírito empreendedor de el-rei; todos reconheceram a importância histórica do acontecimento; todos elogiaram a elevada categoria do discurso de Diogo Pacheco»

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«(…) Finda a atracagem dos sete navios, dentro dos quais viajavam centenas de rudes marinheiros queimados pelo sol e pela salsugem, andrajosos, magros, fedorentos, mas todos heróis, procedeu-se à cerimónia de boas-vindas, não sem antes de Manuel I ordenar a um dos seus validos que tentasse impor silêncio e respeito na zona onde ele e a vasta comitiva se encontravam. E voltando-se para João Faria, que estava atrás de si, pediu: falai agora, preclaro mestre.
Incapaz de disfarçar o nervosismo, o magistrado do Alto Conselho deu meia dúzia de passos em frente, ajeitou o capeirote sobre os ombros, voltou a inclinar a cabeça numa atitude de reverencial respeito pelo soberano, respirou fundo, e disse então com a voz pausada e firme: não escondo, meu senhor, a dificuldade que sinto em discursar perante Vossa Alteza, ínclito Rei de Portugal e dos Algarves de Aquém e de Além Mar. Sei da enorme tarefa e do encargo incomportável que assumi sobre os meus ombros, eu que sou destituído da prática de falar, do dom da eloquência, da agudeza de espírito e em absoluto de todo o saber. Ainda assim tentarei não vos decepcionar, e cumprir no estreito limite das minhas pobres faculdades o honroso encargo que me atribuistes. Dizia Sócrates, aquele sapientíssimo homem, se é que se deve chamar homem a quem é considerado pai de toda a filosofia, deus de todos os filósofos, intérprete e mensageiro da mente divina, que um homem pode, honesta, sã e felizmente, realizar uma obra, mas mais do que uma, afirmava então, só casualmente as consegue fazer bem feitas. Meditando comigo nesta preciosa sentença de ouro, receio parecer estar agora eu, que sou dado a actividades diferentes, a acometer temerária e imprudentemente a dificílima tarefa de orador consumado. Acresce que mesmo sem discurso, por mais notável que fosse, o que não é o caso, bastaria a augustíssima presença de Vossa Alteza Real para tornar divina esta cerimónia que a todos comove, mas que só a vós honra.
Do lastro das naus começava entretanto a desprender-se um intenso cheiro a trampa, urina, sudação e álcool, a animais e ao excremento dos animais, que aos poucos ia tomando conta do porto da ribeira e a baixa da cidade. Indiferente porém a tal circunstância, o orador virou-se de seguida para o capitão da esquadra, Fernandes Ataíde, colocado à direita de Manuel I, e prosseguiu o discurso no mesmo tom solene, definitivo, vagamente arrebatado.
Com embaraço e emoção vos falo nesta hora única, inteira, absoluta, mas isso apenas se deve ao facto de o invictíssimo rei de Portugal me ter dado a honra, decerto devida a outros com maiores qualidades que as minhas e mais saberes do que possuo, de me dirigir em seu nome pela graça de Deus, e em nome de Portugal, ao heróico capitão dos mares, ao dono dos oceanos, e saudá-lo, bem como na sua pessoa todos os marinheiros vivos e mortos que vos prestaram fidelidade e obediência, com todo o ardor e o mais profundo sentimento de apreço e orgulho. À excepção do piíssimo senhor Manuel I, todos nós, todos os que aqui vedes, somos ninguém a vosso lado. Bem-vindo sejais, pois, à terra de onde partistes sem medo da morte e do mar. Que o Altíssimo vos proteja, glorioso capitão! Que Deus abençoe Portugal. Que o Divino continue a iluminar a pureza de espírito de Sua Alteza e nosso sacratíssimo rei! Disse.
Amén, acrescentou o monarca. Amén, ouviu-se em coro. Uma explosão de aplausos com mais vivas ao rei e à rainha, ao Papa e a Deus, a que se seguiram uma nova salva de artilharia ordenada pelo almirante-mor e o toque dos sinos no alto das igrejas, encerraram a cerimónia protocolar da chegada das naus a Lisboa. Nessa tarde ainda, Manuel I reuniu-se na Casa da Mina com o comandante da esquadra, alguns conselheiros políticos e militares, o arcebispo de Lisboa, uns tantos membros do alto clero, e os quatro mais importantes fidalgos que, dias mais tarde, haveriam de integrar a numerosa embaixada com destino a Roma. O monarca queria discutir os últimos pormenores da deputação à sede da cristandade, certificar-se de que tudo estava certo e perfeito, tomar conhecimento do teor da oração de obediência a Sua Santidade e, finalmente, recolher notícias do capitão dos navios sobre a sua longa viagem ao outro lado do mundo. Todos falaram; todos exaltaram o espírito empreendedor de el-rei; todos reconheceram a importância histórica do acontecimento; todos elogiaram a elevada categoria do discurso de Diogo Pacheco a Sua Santidade, ali traduzido do latim para português, por ele mesmo, e, para terminar, todos ouviram desvanecidos o relato de Fernandes Ataíde sobre o aspecto dos povos e os seus estranhos hábitos, bem como as dificuldades vividas pelos bravos marinheiros nos mares e em terra, onde a cada instante morava o perigo da morte e do acaso». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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