«(…) Sucedeu um dia que, como
costumava fazer, ele subiu correndo a escada, indo em direcção ao aposento que as
suas irmãs usavam para trabalhar e, como pôs-se a chamá-las de longe, antes de
entrar, também hábito seu, e eu estivesse sozinha, cheguei à porta e disse, senhor,
as senhoras não estão aqui, desceram para o jardim, e enquanto eu caminhava
para dizer isso, ele já chegava à porta e, tomando-me nos braços, como que por
acaso, disse, ah, senhora Betty, está aqui?, melhor ainda, quero mesmo falar consigo,
e não com elas, e sem me soltar beijou-me três ou quatro vezes. Esforcei-me por
me libertar, ainda que sem excessivo empenho, e ele continuou a apertar-me com
força e voltou a beijar-me até quase não poder respirar, então sentou-se e
disse, querida Betty, estou apaixonado por si.
Devo confessar que suas palavras
inflamaram-me o sangue, foi como se todos os meus sentimentos me invadissem o coração,
deixando-me desnorteada, o que ele pôde ter visto facilmente no meu rosto;
repetiu a seguir, várias vezes, que estava apaixonado por mim, e meu coração
disse, com a clareza de uma voz, que era agradável ouvir aquilo, mais ainda,
todas as vezes que ele dizia estou apaixonado por si, meus rubores claramente respondiam
assim espero, senhor! Daquela vez nada mais aconteceu, fora apenas inesperado,
e depois que ele se foi, logo me recuperei; ele teria ficado mais tempo comigo
se não tivesse lhe ocorrido olhar pela janela e ver que as suas irmãs vinham
pelo jardim, então despediu-se, beijou-me de novo, disse que falava com toda a
seriedade e que voltaria a encontrar-me sem demora e saiu, deixando-me
infinitamente feliz embora perplexa, e o meu sentimento não estaria errado, não
fosse um triste detalhe, no qual consistia todo o equívoco: a senhora Betty
estava apaixonada, o cavalheiro, não.
A partir daquele momento começaram
a agitar-se ideias estranhas na minha cabeça, e posso dizer com toda a
sinceridade que eu não era mais a mesma; o facto de um cavalheiro como aquele
dizer que estava apaixonado por mim e que eu era uma criatura encantadora, como
ele se expressara, era coisa com a qual eu não estava habituada, e a minha
vaidade elevou-se aos píncaros; é verdade que eu tinha a cabeça cheia de
orgulho, mas como nada sabia a respeito da maldade do mundo, esquecia todos os
cuidados quanto a minha própria segurança ou a minha virtude, e se o meu jovem
senhor houvesse desejado aproveitar-se de mim, poderia ter tomado comigo
qualquer liberdade que lhe aprouvesse: não se dera conta da vantagem que tinha,
o que foi a minha sorte naquele momento.
Depois desse avanço, não demorou
muito até que surgisse outra oportunidade de ele novamente me surpreender, e
quase em igual situação; na verdade, houve um tanto de cálculo da sua parte,
embora não da minha; assim se passaram os factos: as moças tinham saído para
fazer visitas com a mãe; o seu irmão viajara para fora da cidade; e, quanto ao
pai, fazia uma semana que se encontrava em Londres, ele estivera vigiando-me
com tanta atenção que sabia onde eu me encontrava, ao passo que eu não sabia
sequer que ele estava em casa; ele subiu rapidamente a escada e, ao me ver
trabalhando, entrou directamente no aposento e começou a fazer o mesmo da vez
anterior, tomando-me nos seus braços e beijando-me durante pelo menos um quarto
de hora sem parar.
Eu
estava no quarto da sua irmã mais nova, e, como não havia ninguém na casa senão
as criadas, atarefadas no andar de baixo, talvez ele se tenha portado com mais
atrevimento: em suma, mostrou-se mais fogoso comigo; é possível que eu tenha sido
um tanto fácil, pois Deus é testemunha de que não lhe opus resistência alguma
enquanto ele se limitava a abraçar-me e a beijar-me; a verdade é que me sentia
demasiado feliz para resistir muito». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida
Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN
978-972-104-443-2.
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