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Depois de muitos anos afastado da vida da cidade, abre hoje os seus braços e
recebe portugueses e estrangeiros de igual forma, mostrando-se no seu melhor.
Quem sabe, alguns poderão ouvir ainda os apressados passos de dona Mécia a
caminho das cozinhas, sons de um passado longínquo que continuam a ecoar nestas
ruas e paredes tão antigas.
O núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros. Um bolo
de camadas sob a sede de um banco
O
Sol descia lentamente sobre o rio e levava consigo os últimos raios de luz de
um dia de trabalho árduo. Sentado à porta da sua cabana, o pescador apressa as
mãos e tenta dar os últimos pontos na rede que estava a remendar. Se não
conseguisse acabar a tarefa enquanto ainda havia sol não poderia voltar ao rio
na manhã seguinte, o que significaria mais um dia de trabalho perdido. Do
interior da cabana chegavam os ruídos típicos de uma família na azáfama das
tarefas domésticas. Sobre o barulho das panelas e do almofariz sobressaía a
discussão dos mais novos sobre quem acenderia o lume na pequena lareira
escavada no centro da casa, e os resmungos do vencido, a quem cabia a tarefa de
ir buscar água para começar a fazer o jantar. A falta de peixe fresco causada
pelas redes estragadas e pela paragem forçada do pescador obrigaria a uma
refeição de peixe seco, o que, por sua vez, reduziria os ganhos da venda deste
produto no mercado da povoação. Mas enfim, eram os contratempos habituais da
vida de pescador, e certamente que alguma outra família cederia uns quantos
mexilhões frescos para ajudar a compor a refeição, como ele próprio tantas
vezes fizera.
Na
pequena comunidade de pescadores da praia, a proximidade e a amizade cresciam
através das paredes partilhadas das cabanas e do espírito de entre ajuda, ligação
esta que não se estendia ao restante núcleo da povoação que habitava o topo da colina
e se dedicava ainda ao comércio dos metais com os povos de longe. Concentrado no
ritmo da agulha que rapidamente passava pelas malhas da rede, o pescador
relembrava as histórias que desde miúdo ouvia contar aos mais velhos, sobre as gerações
mais antigas e a grande viagem que as trouxera até à pequena enseada onde viviam
desde então. À volta da lareira, reviviam as aventuras dos antigos navegadores que
tinham saído do pequeno mar que banhava as costas da Fenícia e atravessado o estreito,
rumo a um desconhecido oceano e aos famosos metais da península.
Muitos
séculos tinham passado desde que os grandes barcos a remos chegavam e partiam daquelas
costas repletos do cobre e estanho que os locais exploravam rio acima. Nos seus
dias, esses comerciantes eram já ama minoria entre uma população dedicada ao trabalho
do campo, à pesca e à olaria, que desenvolvera a cidade e assim encontrara uma
alternativa às épocas de crise que, mesmo por mar traziam conflitos e a queda do
valor dos metais, até então a base das colónias fenícias. Da soleira da sua porta,
o pescador não consegue imaginar que novas mudanças a sua aldeia ainda irá sentir
nos próximos anos. Na paz da sua enseada, muito menos conseguirá imaginar os séculos
de conquistas e os impérios que por ali passarão e mudarão completamente a paisagem
daquela pequena colina que um dia se chamará Lisboa». In Inês Ribeiro e Raquel
Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-626-706-3.
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