A
Crítica crítica sob a feição do mestre encadernador ou a Crítica crítica
conforme o senhor Reichardt. Friedrich Engels
«(…)
E a intrepidez estilística do senhor Reichardt anda lado a lado com a intrepidez
do raciocínio em si. Ele é capaz de entabular transições como as que seguem: o
senhor Brüggemann..., ano de 1843..., teoria do Estado..., todo o probo..., a
grande modéstia de nossos socialistas..., milagres naturais..., exigências a
serem expostas à Alemanha..., milagres sobrenaturais..., Abraão...,
Filadélfia..., maná..., mestre-padeiro..., mas porque nós estamos a falar de milagres, Napoleão logrou etc.
Depois dessas amostras, não é de
estranhar, nem um pouco, aliás, que a Crítica crítica sempre ofereça uma explicação
à frase que ela mesma considera um modo popular de se exprimir. Pois ela apetrecha
os seus olhos com a força orgânica de penetrar o caos. E, sendo assim, resta
dizer que nem mesmo o modo popular de se exprimir da Crítica crítica pode
restar incompreensível no final. Ela se dá conta de que o caminho dos literatos
permanece torto, caso o sujeito que o percorrer não se mostrar forte o
suficiente a ponto de conseguir endireitá-lo e, por isso, atribui com
naturalidade operações matemáticas ao escritor. Per si se compreende, e
a história, que prova tudo o que per si se compreende, prova também
isso: que a Crítica não se torna massa a fim de permanecer massa, mas para
libertar a massa de sua massificação massiva, ou seja, para elevar o modo
popular de se exprimir na linguagem crítica da Crítica crítica. Este é o
estágio mais estagiário da humilhação, quando a Crítica aprende a linguagem
popular das massas e transcende esse jargão tosco para o cálculo superabundante
da dialéctica criticamente crítica.
A Crítica crítica na condição de moinhotenente.
Friedrich Engels
Depois
de a Crítica se ter rebaixado até ao absurdo em línguas estrangeiras, de ter
prestado à autoconsciência os serviços mais essenciais, e ao mesmo tempo ter
libertado o mundo do pauperismo através disso, ela se rebaixa também ao absurdo na práxis e na história.
Ela se apossa das questões inglesas do
dia e nos oferece um esboço da
história da indústria inglesa, que é genuinamente crítico. A Crítica, que se
basta a si mesma, que se completa e encerra em si mesma, naturalmente não pode
reconhecer a história tal como ela de facto aconteceu, pois isso significaria
reconhecer a massa ruim em toda a sua massificação massiva, quando se trata
justamente de libertar a massa da massificação. Com isso, a história é
libertada de sua massificação, e a Crítica, que adopta uma atitude livre em relação ao seu objecto,
grita para a história: tu deves ter
ocorrido de tal ou qual modo! As leis da Crítica têm, todas
elas, efeito retroactivo; antes dos
seus decretos, a história ocorria de modo bem diferente do que passou a ocorrer
depois deles. Eis aqui
por que a história massiva, a chamada história real, desvia-se da maneira significativa da crítica, que passa a acontecer a
partir da página 4 do Caderno VI do Jornal Literário Geral.
Na história massiva não houve nenhuma cidade fabril antes de
haver fábricas; mas na
história crítica, na qual o filho gera o próprio pai, coisa que já acontecia em
Hegel, aliás, Manchester, Bolton e Preston são florescentes
cidades fabris, antes mesmo de se ter pensado em fábricas. Na história real, a indústria de algodão foi
criada sobretudo graças à Jenny de
Hargreaves e à throstle (máquina hidráulica
de fiar) de Arkwright,
ao passo que a mule
de Crompton não foi mais
que um aperfeiçoamento da Jenny através do princípio descoberto por Arkwright;
mas a história crítica sabe distinguir, despreza a unilateralidade da Jenny e
da throstle e dá a coroa à mule, fazendo dela a identidade especulativa do
extremo. Na realidade, a invenção da throstle e da mule trouxe consigo de
imediato a utilização da força
hidráulica para esse tipo de máquinas, mas a Crítica crítica
diferencia os princípios amontoados e confusos da história bruta e faz com que a
utilização apareça apenas bem mais tarde, como se fosse algo bastante
particular. Na realidade a descoberta da máquina a vapor precedeu todas as descobertas
acima citadas, mas na Crítica vemos que ela ocorre no final, na condição de coroa para o todo.
Na
realidade, a aliança de negócios entre
Liverpool e Manchester foi, no seu significado actual, a consequência da
exportação de mercadorias inglesas; na Crítica essa aliança de negócios é a causa desse fenómeno e ambas,
aliança e exportação, a consequência do facto de aquelas duas cidades serem
vizinhas. Na realidade, quase todas as mercadorias saem de Manchester, passam
por Hull ao continente;
na Crítica elas passam por Liverpool.
Na realidade há, nas fábricas inglesas, todas as gradações de salário, de um e meio xelim a 40 xelins e inclusive
mais; na Crítica paga-se apenas um salário
ao trabalhador: 11 xelins. Na realidade a máquina substitui o trabalho manual; na crítica ela substitui o acto de pensar. Na realidade
uma união dos trabalhadores
com o objectivo de aumentar o salário é permitida na Inglaterra; mas na Crítica ela é proibida, uma vez que a
massa tem, ela mesma, de perguntar à Crítica, se quiser se permitir tomar uma
atitude. Na realidade o trabalho na
fábrica fatiga de maneira significativa o trabalhador e origina
enfermidades típicas, há, inclusive, várias obras medicinais que tratam
exclusivamente dessas enfermidades; na crítica o esforço excessivo não impede
nem estorva o trabalho, pois a força é empreendida toda ela pela máquina. Na
realidade a máquina é uma máquina; na Crítica ela é dotada de vontade, pois, uma vez que
ela não descansa, o trabalhador também não pode descansar e torna-se súdito de
uma vontade estranha». In Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels
(1820-1895), A Sagrada Família, A
crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes, 1844, 1965,
Boitempo Editorial, 2003, ISBN 978-857-559-032-4.
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