Carcassonne
«(…) Chamas consumiam tectos de palha que queimavam
violentamente, cuspindo fagulhas ao vento nocturno. A fumaça retorcia-se sobre
a cidade. Um soldado usando a cruz vermelha de São Jorge estava vomitando nos
degraus da igreja, e um cachorro correu para lamber o vómito. O frade virou-se
para o rio, esperando atravessar a ponte e subir para a Cité. Pensava que a
muralha dupla, as torres e as ameias de Carcassonne iriam protegê-lo porque
duvidava de que aquele exército feroz tivesse paciência para realizar um cerco.
Eles haviam capturado o bourg,
o bairro comercial que ficava a oeste do rio, mas aquele local jamais fora
defensável. A maioria dos negócios da cidade era feita no bourg, lá estavam as oficinas de couro, os artesãos
de prata, os armeiros, o matadouro de aves e os mercadores de tecidos, mas
apenas um muro de terra cercava essas riquezas, e o exército havia passado em
bando por cima dessa barreira risível, como uma enchente. Mas a Cité de
Carcassonne era uma fortaleza, uma das maiores da França, um bastião cercado
por enormes torres de pedra e muros altíssimos. Lá dentro ele estaria seguro.
Encontraria um local para esconder la Malice até
que pudesse devolvê-la ao dono. Esgueirou-se por uma rua que não tinha sido
incendiada. Homens invadiam casas, usando marretas ou machados para arrebentar as portas. A maior
parte dos cidadãos tinha fugido para a Cité, mas algumas poucas almas tolas
haviam permanecido, talvez com esperança de proteger as suas propriedades. O
exército havia chegado tão rapidamente que não houvera tempo de levar cada bem
valioso para o outro lado da ponte, até às portas monstruosas que protegiam a
cidadela no topo da colina. Havia dois corpos na sarjeta central. Usavam os
quatro leões de Armagnac, besteiros mortos na defesa inútil do bourg.
O frei Ferdinand não conhecia a cidade. Agora tentava
encontrar um caminho escondido até ao rio, usando becos sombreados e passagens
estreitas. Deus estava com ele, pensou, porque não encontrou inimigos enquanto
corria para o leste, mas então chegou a uma rua mais larga, muito iluminada por
chamas, e viu a ponte comprida, e do outro lado, no alto do morro, as muralhas
da Cité reflectindo o fogo. As pedras pareciam avermelhadas pelos incêndios que
ardiam no bourg. Os muros do inferno, pensou o frade, e
um sopro de vento da noite fez uma grande máscara de fumaça redemoinhar para
baixo, amortalhando a sua visão da muralha, mas não da ponte, onde, vigiando a
extremidade oeste, havia arqueiros. Arqueiros ingleses, usando as túnicas com
cruzes vermelhas e portando os seus arcos longos e mortais. Dois cavaleiros,
com cota de malha e elmo, estavam com eles. Não havia como atravessar, pensou.
Não havia como chegar à segurança da
Cité. Agachou-se, reflectindo. Depois voltou aos becos. Iria para o norte.
Precisou cruzar uma rua importante, iluminada por incêndios
ateados recentemente. Uma corrente, uma das muitas que tinham sido colocadas
atravessando a rua para conter os invasores, estava jogada na sarjeta, onde um
gato lambia sangue. O frei Ferdinand correu à luz do incêndio, enfiou-se noutro
beco e continuou correndo. Deus continuava com ele. As estrelas estavam
obscurecidas pela fumaça pontilhada de fagulhas. Atravessou uma praça, foi
contido por um beco sem saída, voltou e foi para o norte de novo. Uma vaca
mugia numa construção em chamas, um cachorro atravessou o seu caminho com algo
preto e pingando nos dentes. Passou por um curtume, pulando por cima das peles
estendidas nas pedras do calçamento, e mais adiante estava o risível muro de
terra que servia como única defesa do bourg.
Subiu nele, ouviu um grito e olhou para trás, vendo três homens perseguindo-o. Quem
é você?, gritou um deles. Pare!, berrou outro.
O frade ignorou-os. Desceu correndo o barranco, indo para o
campo escuro que ficava além do amontoado de choupanas construídas do lado de
fora do muro de terra, enquanto uma flecha passava sibilando por ele,
errando-o, com a graça de Deus, pela distância de um dedo. Retorceu-se de lado, entrando numa passagem entre dois
casebres. Ali havia um monte de esterco. Passou correndo pela bosta e viu que a
passagem terminava numa parede. Virou-se de volta, vendo os três homens
barrando o seu caminho. Estavam rindo. O que tem?, perguntou um deles. Je suis
gascon, disse
o frei Ferdinand. Sabia que os invasores da cidade eram gascões e ingleses, e
ele não falava inglês. Je suis gascon!, repetiu, indo na direcção deles. É
um dominicano, disse um dos homens. Mas porque o desgraçado fugiu?, perguntou
outro inglês. Tem alguma coisa escondida, é? Dê aqui, disse o terceiro,
estendendo a mão. Era o único que tinha o arco encordoado; os outros dois
estavam com os arcos pendurados às costas e seguravam espadas. Anda, seu desgraçado,
me dê logo. O homem estendeu a mão para la Malice.
Os três tinham metade da idade do frei e, como eram
arqueiros, provavelmente possuíam o dobro da sua força, mas frei Ferdinand
havia sido um grande guerreiro, e as habilidades da espada jamais o haviam abandonado.
E estava com raiva. Com raiva por causa do sofrimento que tinha visto e das
crueldades que tinha ouvido, e essa raiva deixou-o selvagem. Em nome de Deus, disse,
e levantou la Malice como
um chicote. A espada continuava enrolada na seda, mas a sua lâmina cortou fundo
o pulso estendido do arqueiro, partindo os tendões e quebrando ossos. Frei
Ferdinand segurava-a pela espiga, que oferecia um suporte precário, mas a
espada parecia viva. O homem ferido encolheu-se, sangrando, enquanto os seus companheiros
rugiam de fúria e golpeavam com as espadas. O frei aparou as duas com um único
movimento e estocou, e la Malice, mesmo após mais de 150 anos na
tumba, provou-se afiada como uma lâmina recém-polida. O seu gume frontal
atravessou a túnica acolchoada do homem mais próximo, abriu as suas costelas e
perfurou um pulmão, e, antes que o sujeito ao menos soubesse que tinha sido
ferido, frei Ferdinand girou a lâmina de lado para acertar os olhos do terceiro
homem. O sangue brilhou no beco, e agora os três recuavam, mas o frade não lhes
deu chance de escaparem». In Bernard Cornwell, 1356, 2012,
Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-371-1.
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