quinta-feira, 24 de maio de 2018

1356. Bernard Cornwell. «Os dois homens com cotas de malha subiram a escada atrás dele e pareceram preencher a sala com a sua presença maligna»

Cortesia de wikipedia

Carcassonne
«(…) O que estava cego tropeçou para trás e caiu na pilha de esterco, e o seu companheiro brandiu a espada em desespero. La Malice encontrou-a, e a lâmina inglesa partiu-se ao meio. O frade moveu rapidamente a espada envolta em seda, cortando a goela do sujeito, e sentiu o sangue espirrar no rosto. Tão quente, pensou, e que Deus me perdoe. Um pássaro guinchou no escuro, e as chamas rugiam no bourg. Matou os três arqueiros, depois usou a seda para limpar a lâmina de la Malice. Pensou em fazer uma breve oração pelos homens que havia acabado de matar, depois decidiu que não queria compartilhar o céu com aquelas criaturas grosseiras. Em vez disso beijou la Malice, depois revistou os três corpos e encontrou algumas moedas, um pedaço de queijo, quatro cordas de arco e uma faca. A cidade de Carcassonne ardia e enchia com fumaça a noite de Inverno. E o frade caminhou para o norte. Ia para casa, para casa, na torre. Levava la Malice e o destino da cristandade. E desapareceu no escuro.
Os homens chegaram à torre quatro dias depois do saque de Carcassonne. Eram 16, todos com capas de boa lã grossa e todos montando bons cavalos. Quinze usavam cota de malha e tinham espadas à cintura, e o cavaleiro restante era um padre que carregava no pulso um falcão encapuzado. O vento descia áspero o desfiladeiro da montanha, agitando as penas do falcão, sacudindo os pinheiros e chicoteando a fumaça dos casebres na aldeia abaixo da torre. Fazia frio. Essa parte da França raramente via neve, mas o padre, olhando por baixo do capuz, achou que talvez houvesse flocos no vento. Havia muros arruinados em volta da torre, prova de que o lugar já fora uma fortaleza, mas tudo que restava do velho castelo era a torre e uma construção baixa, com tecto de palha, onde talvez morassem serviçais. Galinhas ciscavam na poeira, uma cabra amarrada olhava os cavalos e um gato ignorava os recém-chegados. O que já fora uma óptima fortaleza simples, que tinha por objectivo defender a estrada para as montanhas, era agora uma fazenda, mas o padre notou que a torre continuava em boas condições e que a pequena aldeia na reentrância abaixo da velha fortaleza parecia bastante próspera.
Um homem saiu correndo da cabana com tecto de palha e fez uma reverência profunda diante dos cavaleiros. Não porque os reconheceu, mas porque homens com espada exigiam respeito. Senhores?, perguntou o homem, ansioso. Guarde os cavalos, ordenou o padre. Primeiro caminhe com eles, acrescentou um dos homens com cota de malha. Ande com eles, escove-os, não os deixe comerem demais. Senhor, disse o homem, fazendo outra reverência. Isto aqui é Mouthoumet?, perguntou o padre enquanto apeava. Sim, padre. E você serve ao sire de Mouthoumet? Ao conde de Mouthoumet, sim, senhor. Ele está vivo? Deus seja louvado, padre, ele está vivo. Deus seja louvado mesmo, disse o padre descuidadamente, depois foi até à porta da torre, que ficava no topo de uma pequena escada de pedra.
Chamou dois dos homens com cota de malha para acompanhá-lo e ordenou que o resto esperasse no pátio, depois empurrou a porta e viu-se numa ampla sala redonda usada para guardar lenha. Presuntos e maços de ervas pendiam das traves. Uma escada subia por metade da parede, e o padre, não se incomodando em se anunciar ou em esperar que um empregado o recebesse, foi para o andar de cima, onde havia uma lareira junto à parede. Ali ardia um fogo, mas boa parte da fumaça permanecia na sala circular, empurrada de volta pelo vento frio. As antigas tábuas do piso eram cobertas por tapetes puídos; havia dois baús com velas acesas em cima, porque, mesmo sendo dia lá fora, as duas janelas da sala tinham cobertores estendidos para bloquear o vento. Sobre uma mesa estavam dois livros, alguns pergaminhos, um tinteiro, um feixe de penas, uma faca e um velho peitoral enferrujado de armadura, que servia como tigela para três maçãs murchas. Junto à mesa havia uma cadeira, e o conde de Mouthoumet, senhor da torre solitária, estava deitado numa cama perto das brasas na lareira. Havia um padre grisalho sentado junto dele, e duas mulheres idosas encontravam-se ajoelhadas ao pé da cama.
Saiam, ordenou aos três o padre recém-chegado. Os dois homens com cotas de malha subiram a escada atrás dele e pareceram preencher a sala com a sua presença maligna. Quem é o senhor?, perguntou nervoso o padre grisalho. Eu mandei sair, então saia. Ele está morrendo! Saia! O velho sacerdote, com um escapulário em volta do pescoço, abandonou os sacramentos e seguiu as duas mulheres descendo a escada. O homem agonizante olhou os recém-chegados, mas não disse nada. O seu cabelo era comprido e branco, a barba cheia e os olhos fundos. Viu o padre colocar o falcão na mesa, e as garras do pássaro rasparam na madeira. Ela é une calade, explicou o padre. Une calade?, perguntou o conde, com a voz muito baixa. Olhou as penas cor de ardósia e o peito claro e riscado da ave. É tarde demais para uma calade. O senhor deve ter fé, disse o padre». In Bernard Cornwell, 1356, 2012, Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-371-1.

Cortesia de ERecord/JDACT