Cortesia
de wikipedia
Carcassonne
«(…) O que estava cego tropeçou para trás e caiu na pilha de
esterco, e o seu companheiro brandiu a espada em desespero. La Malice
encontrou-a, e a lâmina inglesa partiu-se ao meio. O frade moveu
rapidamente a espada envolta em seda, cortando a goela do sujeito, e sentiu o
sangue espirrar no rosto. Tão quente, pensou, e que Deus me perdoe. Um pássaro
guinchou no escuro, e as chamas rugiam no bourg. Matou os
três arqueiros, depois usou a seda para limpar a lâmina de la Malice.
Pensou em fazer uma breve oração pelos
homens que havia acabado de matar, depois decidiu que não queria compartilhar o
céu com aquelas criaturas grosseiras. Em vez disso beijou la Malice,
depois revistou os três corpos e encontrou algumas moedas, um pedaço de queijo,
quatro cordas de arco e uma faca. A cidade de Carcassonne ardia e enchia com
fumaça a noite de Inverno. E o frade caminhou para o norte. Ia para casa, para
casa, na torre. Levava la Malice e
o destino da cristandade. E desapareceu no escuro.
Os homens chegaram à torre quatro
dias depois do saque de Carcassonne. Eram 16, todos com capas de boa lã grossa
e todos montando bons cavalos. Quinze usavam cota de malha e tinham espadas à
cintura, e o cavaleiro restante era um padre que carregava no pulso um falcão
encapuzado. O vento descia áspero o desfiladeiro da montanha, agitando as penas
do falcão, sacudindo os pinheiros e chicoteando a fumaça dos casebres na aldeia
abaixo da torre. Fazia frio. Essa parte da França raramente via neve, mas o
padre, olhando por baixo do capuz, achou que talvez houvesse flocos no vento. Havia
muros arruinados em volta da torre, prova de que
o lugar já fora uma fortaleza, mas tudo que restava do velho castelo era a
torre e uma construção baixa, com tecto de palha, onde talvez morassem
serviçais. Galinhas ciscavam na poeira, uma cabra amarrada olhava os cavalos e
um gato ignorava os recém-chegados. O que já fora uma óptima fortaleza simples,
que tinha por objectivo defender a estrada para as montanhas, era agora uma
fazenda, mas o padre notou que a torre continuava em boas condições e que a
pequena aldeia na reentrância abaixo da velha fortaleza parecia bastante
próspera.
Um homem saiu correndo da cabana com tecto de palha e fez
uma reverência profunda diante dos cavaleiros. Não porque os reconheceu, mas
porque homens com espada exigiam respeito. Senhores?, perguntou o homem,
ansioso. Guarde os cavalos, ordenou o padre. Primeiro caminhe com eles, acrescentou
um dos homens com cota de malha. Ande com eles, escove-os, não os deixe comerem
demais. Senhor, disse o homem, fazendo outra reverência. Isto aqui é
Mouthoumet?, perguntou o padre enquanto apeava. Sim, padre. E você serve ao sire
de Mouthoumet? Ao conde de Mouthoumet, sim, senhor. Ele está vivo? Deus seja
louvado, padre, ele está vivo. Deus seja louvado mesmo, disse o padre descuidadamente,
depois foi até à porta da torre, que ficava no topo de uma pequena escada de
pedra.
Chamou dois dos homens com cota de malha para acompanhá-lo
e ordenou que o resto esperasse no pátio, depois empurrou a porta e viu-se numa
ampla sala redonda usada para guardar lenha. Presuntos e maços de ervas pendiam
das traves. Uma escada subia por metade da parede, e o padre, não se
incomodando em se anunciar ou em esperar que um empregado o recebesse, foi para
o andar de cima, onde havia uma lareira junto à parede. Ali ardia um fogo, mas
boa parte da fumaça permanecia na sala circular, empurrada de volta pelo vento
frio. As antigas tábuas do piso eram cobertas por tapetes puídos; havia dois
baús com velas acesas em cima, porque, mesmo sendo dia lá fora, as duas janelas
da sala tinham cobertores estendidos para bloquear o vento. Sobre uma mesa
estavam dois livros, alguns pergaminhos, um tinteiro, um feixe de penas, uma
faca e um velho peitoral enferrujado de armadura, que servia como tigela para
três maçãs murchas. Junto à mesa havia uma cadeira, e o conde de Mouthoumet,
senhor da torre solitária, estava deitado numa cama perto das brasas na
lareira. Havia um padre grisalho sentado
junto dele, e duas mulheres idosas encontravam-se ajoelhadas ao pé da cama.
Saiam, ordenou aos três o padre recém-chegado. Os dois
homens com cotas de malha subiram a escada atrás dele e pareceram preencher a
sala com a sua presença maligna. Quem é o senhor?, perguntou nervoso o padre
grisalho. Eu mandei sair, então saia. Ele está morrendo! Saia! O velho
sacerdote, com um escapulário em volta do pescoço, abandonou os sacramentos e
seguiu as duas mulheres descendo a escada. O homem agonizante olhou os
recém-chegados, mas não disse nada. O seu cabelo era comprido e branco, a barba
cheia e os olhos fundos. Viu o padre colocar o falcão na mesa, e as garras do
pássaro rasparam na madeira. Ela é une calade, explicou o padre. Une calade?,
perguntou o conde, com a voz muito baixa. Olhou as penas cor de
ardósia e o peito claro e riscado da ave. É tarde demais para uma calade.
O senhor deve ter fé, disse o padre». In Bernard Cornwell, 1356, 2012,
Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-371-1.
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