«(…) O grito do capitão ressoa na
cabeça de François: rumo à Terra Santa, Terra Santa, Terra Santa... Tal como Colin,
ele imagina grandes extensões ocre semeadas de palmeiras, de gordas plantas espinhosas,
de oliveiras centenárias. Um céu azul do qual o sol nunca se ausenta. Um céu
onde voam somente pombas brancas, em silêncio. E depois uma terra pedregosa e recortada
em relevos nítidos e claros, sem musgos nem lama. É uma região maravilhosa, quase
quimérica, que ele povoa sem dificuldade alguma de toda a espécie de anjos, de
profetas barbudos, de génios maus e de madonas, mas cujos habitantes, a gente,
não consegue figurar seja como for. Serão seres curtos de perna e muito morenos,
ou antes altos e esbeltos? Musculados ou franzinos? Parecer-se-ão com os italianos,
com os mouros, com os gregos? As mulheres usarão véus na cabeça ou a cabeleira ondulada
ao vento? Pouco importa, trata-se de uma terra demasiado fabulosa para pertencer
seja a quem for. E é porque não pertence a ninguém que todos, uns ou outros por
seu turno, dela se apoderam. Os próprios deuses a disputam. Os seus senhores actuais
são mamelucos, antigos mercenários e escravos vindos do Egipto, tal como os hebreus.
Suplantaram os cruzados que suplantaram os bizantinos que suplantaram os romanos,
os gregos, os persas, os babilónios, os assírios. E eis que já os otomanos batem
às portas de Jerusalém para expulsar dela os mamelucos. Todos são apenas ocupantes.
A sua presença está votada a ser ali precária, transitória, muito simplesmente porque
todos cometem o mesmo erro, uns atrás dos outros, ao longo de séculos: confundem
constantemente a questão. A quem pertence, então, a Terra Santa? Àqueles que a possui?
Àqueles que a ocupa? Àquele que a ama? Se for deveras tão santa como se diz, uma
terra assim não pode ser conquistada pelas armas. Não pode ser possessão, domínio
ou sequer território. E, nesse caso, não deveria inverter-se a pergunta e questionar:
qual é o povo, então, que lhe pertence? Deveras. Os mamelucos?
Acre nada tem de muito bíblico. É
uma fortaleza como essas que se vêem um pouco por toda a parte nos campos de França.
As suas ameias grosseiras, talhadas improvisadamente na massa, recortam-se sobre
um céu límpido, que os pardais invadem precipitando-se em bandos sobre os
resíduos que juncam os cais. O porto é pequeno. Dois navios oscilam molemente no
calor, tangidos por uma leve brisa de oeste. Marinheiros e soldados deambulam, procurando
o caminho que os levará às tabernas e às raparigas. Viam-se amontoados por toda
a parte barris gordurosos, cheios de azeite, sacos de especiarias, caixotes vazios,
abandonados aos ratos. Nem François nem Colin experimentam emoções de
circunstância. Não se prosternam para beijar o solo sagrado, que jaz sob os detritos.
Villon
contenta-se com dobrar um joelho, para observar as conveniências. E contudo sente
uma presença, ou um sopro, que paira por cima dos telhados, alastra até às encostas
do Carmelo, cobre as dunas que orlam o litoral. Uma presença invisível que não é
necessariamente Deus. Antes, uma espécie de irradiação implacável que torna tudo
mais claro, mais certo. Será da luz fulgurante que, aqui, não se sobrecarrega de
cambiantes? François tem a impressão de que este país árido e duro lhe lança um
desafio». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel
Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-724-237-3.
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